A Constituição de 1976 definiu o direito à segurança social a ser exercido no quadro de um sistema unificado e descentralizado. Ao fazê-lo rompia de modo fundamental com dois princípios do sistema de proteção social de antes do 25 de Abril: substituía inequivocamente a ideia de previdência com a subjacente carga individual por um conceito de segurança formulado como direito social e afirmava o princípio da unificação da proteção social contra a fragmentação que vinha do corporativismo e - embora já mitigado - se mantinha desde a legislação de 1935, feita sob grande influência fascista.
A integração defendida pela Constituição começou a fazer-se logo em 1977 com a criação dos centros distritais de segurança social e a integração nestes de diversas caixas de previdência. Mas várias profissões e atividades resistiram a este movimento, subsistindo diversas caixas por integrar durante décadas. Muitas das caixas não integradas evoluíram para instituições mutualistas. Outras foram integradas em serviços existentes de proteção complementar como os serviços sociais de autarquias ou do Estado. Outras ainda definharam sem serem integradas no devido tempo. Em 2012, a generalidade dessas caixas moribundas foi extinta. Chegámos, assim, a uma situação em que a caixa de previdência de advogados e solicitadores (CPAS) é virtualmente a última sobrevivente do sistema de proteção social corporativo criado na fase mais ideológica do fascismo português.
A resistência à integração da CPAS na segurança social foi cedo chancelada pelos governos. Apesar da determinação de integração das caixas na segurança social feita em 1977, logo em 1978 no governo Nobre da Costa foi atualizado o estatuto da CPAS. Do lado da segurança social, a exclusão foi legitimada pela inclusão em 1993 no regime dos trabalhadores independentes de uma cláusula de exclusão de advogados e solicitadores.
Sendo uma caixa velha e criada com uma concepção clássica de riscos sociais a cobrir, a CPAS não se adaptou aos tempos e manteve-se indiferente à evolução dos dos valores sociais e das configurações dos percursos profissionais das pessoas que cobre. É manifestamente anacrónica e sintomática dessa incapacidade a sua indiferença pela parentalidade, com a consequente ausência de cobertura de riscos na gravidez e de benefícios a pais e mães com o nascimento dos seus filhos.
É certo que a CPAS manteve regras com razoável paralelismo com a segurança social, nomeadamente em matéria de descontos e fórmulas de cálculo para acesso a pensões de velhice e invalidez, que devem garantir o seu equilíbrio de longo prazo. Mais ainda porque as profissões que cobre são relativamente juvenilizadas com o alargamento a muitos jovens profissionais e porque as presunções de rendimentos que foram estipuladas garantem uma base contributiva significativa. Mas essas presunções, se protegem a longo prazo os as pensões dos beneficiários, vêm com um custo elevado sobretudo para quem não consiga auferir efetivamente os rendimentos presumidos. Este problema, aliás, existiu também no regime dos trabalhadores independentes, mas foi oportunamente corrigido com a sua substituição das presunções pelos rendimentos efetivos.
Os custos de manter o sistema de segurança social que ao contrário da convicção generalizada não é privado mas público regulado ainda pelos princípios do corporativismo tornaram-se mais evidentes com a crise associada à Covid19 e as respostas acionadas pelo governo e pela CPAS. Com efeito, nos termos do decreto-lei 10/A 2020, foram acionados apoio excecionais a trabalhadores independentes e a trabalhadores por conta de outrem que pouparam o sistema previdencial da Segurança Social, por serem enquadrados no âmbito do subsistema de proteção familiar,que não estão disponíveis para os beneficiários da CPAS. Compreende-se que esta caixa não queira pôr em causa o seu equilíbrio com benefícios semelhantes. Por outro lado pode argumentar-se que, se o orçamento de Estado vai proteger os trabalhadores da Segurança Social, poderia também protegido os da CPAS. Afinal nos termos do DL 10/A de 2020 é a proteção social de cidadania que é ativada, ou seja são os impostos que todos pagam que financiam as medidas.
Mas este problema é revelador dos riscos de manter uma proteção social separada para um grupo profissional que se vê a si mesmo como privilegiado e pretende manter-se separado do contrato social global. Agora que esse suposto previlégio pode redundar em prejuízo para os beneficiários, tal como já se tinha visto que a gestão autónoma de riscos sociais não levava a uma fácil adaptação e resposta a novos problemas e valores, pode ser que as consciências despertem. Mas o que está verdadeiramente em causa é superar uma anomalia na segurança social que transforma os advogados, solicitadores e agentes de execução em últimos resistentes ao modelo de proteção social desenhado pela Constituição. Ou seja, integrar a CPAS na segurança social não é um mero problema técnico, de gestão ou de resposta a um problema de curto prazo, é uma questão de afirmação do sistema democrático constitucional. É uma questão política e de modelo de cidadania social.
.

Sem comentários:
Enviar um comentário