28.7.19

Fui Sandinista

Eu era um estudante de sociologia,  nos anos oitenta, Portugal  era governado em Bloco Central, Mário Soares glorificava na Europa a visão de Ronald Reagan para a América Central e promovia Eden Pastora, o “comandante zero”, com o hoje desaparecido da vida pública, mas então influente Rui Mateus. E eu era um jovem Sandinista,
Peretencia a um coletivo, criado no âmbito do CIDAC, chamado GSAL (Grupo de Solidariedade com a América Latina), onde conheci algumas das melhores pessoas com que me cruzei em toda a minha vida.
Todos os anos, a 19 de julho , comemorávamos a revolução Sandinista, esse momento fundador de uma liberdade alternativa na América Central, que derrubara o ditador Somoza, criará um regime pluralista, aberto, orientado pelo povo, socialista e cristão, que dava voz à diversidade e até tinha um  poeta e padre, Ernesto Cardinal, como um dos seus ícones e ministros. Li os seus poemas com amigos. Discuti muito como Nicarágua não seria Cuba, mas seguiria o caminho do pluralismo e faria uma reforma agrária de novo tipo.
O nossso grupo, de que eu era apenas o mais jovem e que nele absorvia uma mundivisão fascinante,  acreditava que a América Central em particular e a América Latina em geral sairia do ciclo de ditaduras militares, regimes autocráticos, predomínio das oligarquias que a asfixiava.
Nessa altura era Sandinista e ouvia alguns camaradas revolucionários, vários deles trotskistas, criticar o que lhes parecia o excessivo centrismo do novo poder, o que achavam ser uma cedência  às liberdades burguesas com o sentido de que a Nicarágua venceria quer o sectarismo quer a tentação autoritária cubana.
Mas os anos passaram e da Frente Sandinista de Libertação Nacional não sobrou nem cultura democrática, nem espírito revolucionário, nem consciência social, nem sentido de resposta às necessidades das populações. Apenas uma caricatura de poder em nome do povo, talvez apoiada por Cuba porque a geoestrategia é o que é, mas em que Daniel Ortega é presidente e a sua mulher vice-Presidente, a legislação sobre o aborto é das mais restritivas do mundo, há grupos paramilitares que aterrorizam as populações e a oligarquia foi substituída pela clique fiel ao casal presidencial. Tudo como em qualquer ditadura.
Eu acho que ainda sou Sandinista. Mas a Nicarágua já não é e este artigo do Avamte desgostou-me porque é um mero exercício pavloviano, incapaz de ver quem é hoje Ortega e o que representa para o seu povo. Mas porque socialistas de esquerda, progressistas de várias origens, católicos empenhado na transformação social, em todo o mundo e também em Portugal, acreditámos que a Nicarágua seria um país diferente num continente onde o povo, os camponeses, os indígenas, as pessoas pobres são mártires, e não foi nada disso. Foi apenas mais uma ditadura.
E quando a cabeleireira que nestes últimos me meses me corta o cabelo em Washington, nicaraguense fugida da pobreza e da ditadura, que sabe que sou apenas um português que trabalha num sítio importante me diz o que é Ortega para a sua aldeia, para a sua família, para o seu povo, não tenho vergonha de ter sido Sandinista e  ela também me diz que nem sempre Ortega foi assim. Pergunto-me, sim, como se pode prevenir a tirania. Daniel Ortega, hoje, é apenas mais um tirano, seja qual for a retórica em que embrulhe esse facto.

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