20.5.15

Um chá no deserto

Raramente temos na vida uma colega de carteira que podia ser nossa mãe. Eu tive. Em 1995, nas instalações improvisadas numa semana para sede do novo Ministério da Solidariedade Social, como o mais novo e o mais velho membros do Gabinete do Ministro Ferro Rodrigues.
A senhora da mesa em frente não podia contrastar mais comigo. Ela era uma dirigente que tinha acompanhado todas as reformas da segurança social no Portugal democrático, eu um jovem vindo da universidade e, achava ela, do abominável mundo das jotas. Ela achava que eu me perguntava o que estava ela ali a fazer e eu achava que ela se perguntava o que saberia eu do tema para estar ali.
Mas foi amizade à primeira vista, forte e para sempre. Sobre trabalho digo apenas que ela foi a pessoa da velha máquina da segurança social que mais aberta se mostrou às heterodoxias da então batizada nova geração de políticas sociais do governo de António Guterres. E que grande aliada para virar do avesso a política de luta contra a pobreza ali tivemos. Sobre experiências de vida, lembro apenas que era uma mulher licenciada em direito e profissional do tempo em que em Portugal uma mulher não podia abandonar o país sem autorização do marido e sempre foi uma mulher emancipada. E que lições sobre o que o 25 de Abril trouxe ao quotidiano das mulheres aprendi com ela. Sobre a nossa amizade não consigo dizer nada, a não ser que lamento profundamente tê-la cultivado tão mal nos últimos anos. E que força ela me deu, só pela presença sem interrupções ou hesitações do seu sorriso.
Um dia, já ela reformada, convidei-a para um trabalho no Chade e disse-lhe na mensagem que era a altura de irmos tomar um chá no deserto. Não foi, mas esteve disponível e começámos aí a adiar uma conversa que nunca faremos. Há poucas semanas, percebo agora que já não o esperava, recordou-me que lhe devia um jantar há anos.
Nesse jantar ou nesse chá ter-lhe-ia dito que gostava de envelhecer a olhar para a vida como ela olhava, com o sentido de humor que não perdeu, com a capacidade que tinha de reinventar causas e se agarrar ao futuro e não ao que estava feito. imagino que me respondesse com o seu "ó menino, olhe que...". 
Esse jantar com a minha mais velha amiga, Elza Chambel já não vai acontecer. Mas ainda hei-de tomar o chá no deserto que prometemos um ao outro. 












6.1.15

Sobre o óbito do arco da governação


A insistência de António Costa na recusa do conceito de arco da governação é uma ruptura de grande impacto na dinâmica do sistema partidário português. Talvez a mais importante desde que Ernesto Melo Antunes garantiu que o PCP permaneceria legal, na sequência do 25 de Novembro. Resta saber que efeitos terá.
Desde 1975 o nosso sistema partidário assentou na ideia de que o PCP estava "naturalmente" excluido do jogo da formação de maiorias parlamentares de apoio a um governo. Esta regra apenas uma vez foi afrontada - na história ainda não completamente esclarecida, da recusa por Mário Soares de indigitar Vitor Constâncio para Primeiro-Ministro depois da moção de censura ao governo minoritário de Cavaco Silva apresentada pelo PRD e apoiada pelo PS e pelo PCP. A lealdade do PCP ao bloco soviético e a sua posição contrária à adesão de Portugal à então CEE eram esteios suficientes para esta marginalização tão imposta pelos partidos do "consenso europeu" quanto desejada pelo próprio PCP.
Se o "arco da governação" rejeitou o PCP, também este sempre procurou fugir dele, mesmo quando teve oportunidades históricas para não o fazer. Um dia conheceremos as hesitações, angústias e bloqueios que impediram a direcção de Carlos Carvalhas de levar mais longe as pontes e processos de diálogo que foram lançados em momentos-chave dos governos de António Guterres e acredito que a defenestração dessa mesma direcção não é alheia a essas discretas e nem sempre ineficazes aproximações.

A marginalização do PCP implicou também que as sensibilidades mais à esquerda no PS fossem empurradas para um impasse táctico. Quem no PS propusesse abertamente um diálogo com o PCP era visto como sustentando um desvio que conduziria inevitavelmente o PS a permanecer na oposição. Esse anátema vive até hoje nas hostes socialistas. PS ganhador é PS em busca do centro. Compreende-se. Com o PCP fora do jogo de formação de maiorias, afastar o PS do centro seria perder espaço eleitoral sem qualquer compensação política expectável.
O crescimento do BE poderia ter desbloqueado a situação, mas não o fez. Apesar da camada superficial cosmopolita, a dinâmica profunda do BE vive dos complexos da extrema-esquerda do PREC e amarrou este partido, para as grandes questões estratégicas, à posição do PCP quanto a possíveis convergências de governo à esquerda. Quantas vezes se pressente que o BE olha para o que o PCP fará antes de definir sequer um sentido de voto sobre uma questão de menor importância. Formalmente o BE não é contra a UE e nem sequer defende a saída de Portugal do Euro, mas nada na sua acção política reflecte essas diferenças, que parecem abismais, face ao PCP.

Em 2002, nos breves meses em que tive alguma responsabilidade política na direcção do PS, bem me lembro da ginástca que colectivamente nos auto-impusemos para obedecer ao cânone do arco da governação e fugirmos ao anátema do "desvio de esquerda" e de como formulámos a posição de que o PS só governaria com quem estivesse com a Europa (para nos demarcarmos dessa esquerda) e com o modelo social (para nos mantermos distantes da direita), de facto, numa altura em que as sondagens não nos davam qualquer hipótse de maioria absoluta, abdicando de tentar formar um governo sólido.

Na verdade, a teoria do arco da governação construiu em Portugal um espaço político tripolar: à direita PSD e CDS, ao meio (para não dizerem que disse ao centro) o PS, à esquerda (que podem adjectivar de conservadora, fixista, etc.) o PCP e depois também o BE. Nesse espaço tripolar, o PS ou governa sózinho (como entre 1976 e 1978, 1995 e 2002 e  2005 e 2011) ou à direita (como entre 1978 e 1979 e entre 1983 e 1985). E esta "lei" nunca foi posta em causa. Aliás, no PS, ponderar sequer cenários de alianças pós-eleitorais tornou-se motivo de quase transformação em inimigo interno, por ser a abertura para a "desistência" de uma maioria absoluta que o PS só teve uma vez em quase 40 anos de democracia.

Mais importante, o sistema político transformou esta tripolaridade numa espécie de triângulo em que cabe ao PS reformar sózinho, apertado sempre por uma tenaz direita-esquerda (muitas leis importantes foram aprovadas pelo PS sózinho no Parlamento com cómoda rejeição com argumentos cruzados da direita e da esquerda). Assim, a direita, quando em maioria, avança no sentido conservador, o PS quando em maioria avança no sentido progressista-realista  e o PCP e o BE ficam isentos de jogar o jogo da definição do futuro, numa especialização de funções muito conveniente para a capitalização de descontentamentos, mas contrária à governação progressista equilibrada.

As declarações de António Costa ameaçam este equilíbrio perverso e prejudicial para a possibilidade de governar Portugal pela esquerda e são um ponto de viragem. Não creio que elas tenham qualquer impacto no comportamento de curto prazo do PCP e do BE em relação ao PS ou em relação à governabilidade do país. Mas têm méritos tácticos e estratégicos e podem, quem sabe, abrir uma janela de oportunidade.

No plano táctico, o PS pode agora dizer aos portugueses que a exclusão do PCP e do BE das eventuais soluções de governo para o país é apenas e só uma auto-exclusão. O que nunca fez com a clareza com que António Costa o faz agora.
No plano estratégico, inicia um degelo necessário entre os partidos de esquerda que há-de dar frutos em futuras direcções, daqui a uma ou duas décadas que seja, quando estiverem verdadeiramente reformados os protagonistas que vêm de 1975. Põe uma porta onde havia uma parede. Algum dia, alguém, a abrirá.
E, quem sabe como reagirão os eleitores à auto-marginalização do PCP e do BE? Perante o anúncio de novas forças partidárias como o partido de Marinho Pinto e o Livre, que apelo terá a posição de que a melhor garantia de controlo da autenticidade das promessas do PS e da fidelidade deste a um rumo progressita é a que é dada por quem se dispõe a trabalhar com ele?  Que capacidade terá, por seu lado, o PS de responder positivamente a agendas políticas próprias de um ou mais potenciais parceiros de coligação com que não tem que concordar mas a cuja acção tem que se acomodar?

Posso errar, mas não tenho dúvidas de que António Costa quer virar uma página na história do sistema partidário português e nas eleições legislativas do próximo ano caberá aos eleitores confirmar ou não a solidez dessa viragem.