O Ricardo Paes Mamede tem razão. Está por demonstrar que os partidos da esquerda não conseguem entender-se sobre reformas estruturais necessárias para fazer de Portugal simultaneamente um país próspero e mais igualitário.
E volta a ter razão quando lembra que "Para que o Estado social seja sustentável, os seus custos não podem exceder as receitas fiscais, sob pena de pôr em causa outras funções do Estado e/ou a sua viabilidade financeira. Por sua vez, a sustentabilidade financeira do Estado não pode ser obtida através de uma pressão fiscal de tal forma elevada que inviabilize o investimento privado ou a competitividade das empresas portuguesas nos mercados globais. Da mesma forma, a proteção da parte mais fraca nas relações laborais - os trabalhadores - tem de ter em conta as condições internacionais de comércio e produção."
Pelo que me apercebo há, contudo, um problema de programa político para resolver.
Não há futuro para o Estado Social sem garantir a sustentabilidade financeira do Estado e a acção para garantir essa sustentabilidade tem sido subvalorizada à esquerda. E há que refletir sobre a evolução do trabalho e a emergência de novos riscos sociais, quando à esquerda as atenções têm estado voltadas para os riscos sociais tradicionais e se olha muitas vezes para as dinâmicas sociais de um ângulo conservador que acredita que preservar é mais importante que reavaliar e que toda a mudança é em si um perigo.
O programa de longo prazo para a esquerda portuguesa na sua pluralidade e diversidade não será viável se não for inovador e especialmente se não conseguir adaptar-se às necessidades e expectativas das novas gerações a quem há pouco para devolver e com quem há muito que construir para que não deixemos por muito tempo de ser um país de oportunidades.
O risco que vejo emergir no horizonte e que espero que todas as esquerdas saibam prevenir é o de uma excessiva concentração na negociação dos pequenos passos possíveis prejudicar a energia para pensar os grandes passos necessários para que a ideia de reforma estrutural não continue capturada pela direita. Essa tem um programa claro para o país, assente em maior desigualdade, menos serviços públicos e maior individualização dos riscos sociais. Cada vez que vai ao poder avança um pouco nessa agenda, mais travada pela Constituição do que pela oposição. Um programa que agrada aos mercados financeiros, que terão sempre uma palavra a dizer enquanto estivermos atados a uma montanha de dívida e aos nossos parceiros europeus onde predominam atualmente os partidos conservadores.
O nosso programa alternativo partilhável por todas as esquerdas, por muito que custe dizê-lo, em muitos aspectos é ainda uma obra em construção e, acrescento, aparentando não estar a receber o melhor das nossas energias, nem sequer na sua conceptualização quanto mais na sua promoção e debate. Temos estado entretidos em, de um lado promover as boas contas e dos outros sucumbir a retóricas políticas que ao género populista atribuem os nossos problemas ou a ingerências externas ou a elites parasitárias. Contabilidade e populismo não são seguramente os argumentos que farão a diferença no futuro.
A esquerda começa a precisar de um bom programa em torno do qual possa convergir se e quando quiser. O Ricardo Paes Mamede é precisamente uma das pessoas de quem a esquerda precisa para articular esse programa.
22.5.19
21.5.19
O dia do triunfo do absurdo
No dia 21 de maio de 2003 o absurdo triunfou sobre a minha vida.
Foram precisos quinze anos, as várias instâncias judiciais portuguesas e a proteção da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, para que pudesse finalmente triunfar eu sobre esse triunfo do absurdo, que se materializou na decisão de me prender por crimes que não cometi, recorrendo a indícios que o não eram, negando-me o acesso aos meios de prova que permitissem refutar as imputações que me eram feitas.
No fim fez-se justiça. Mas não sei sobre quantas pessoas o mesmo tipo de absurdo que transformou a minha vida numa outra vida, também minha, mas não a mesma, vai triunfar hoje.
No primeiro 21 de maio em que podia ter o privilégio de esquecer senti, pelo contrário, o dever de lembrar.
O dever de lembrar que no modo como agiram os magistrados concretos do Ministério Público que pediram a minha prisão e o juíz específico de instrução criminal que me prendeu houve uma distorção do seu papel face ao que o nosso ordenamento jurídico lhes contempla a que nunca o sistema judicial deu atenção. Acredito até que nenhum deles tivesse à partida nada de pessoal contra mim, o que quer dizer que foi a sua própria identidade pessoal e profissional que os conduziu e não é mais tranquilizador.
O dever de lembrar os que lutaram comigo pela reposição da verdade. Acho que nunca lhes agradeci de modo apropriado a escolha de, nesse dia e nos dias, meses e anos que se lhe seguiram, não olhar para o lado ou esquecer. Penso nelas e neles como exemplo, pergunto-me todos os dias se terei sempre a coragem cívica e a solidariedade humana que elas e eles tiveram e prometo a mim próprio seguir-lhes os passos.
Mas também o dever de lembrar as pessoas que conheci na prisão e que apenas tinham em comum o facto de serem dignos de respeito num contexto em que esse respeito pode facilmente faltar-lhes. Conheci, na experiência de vida que o dia absurdo me proporcionou, a humanidade em condições mais extremas do que em toda a minha vida anterior e posterior, incluindo casos perturbadores de anomia, distorção dos valores e degradação humana. Vi mais de perto do que algum dia julguei ver as causas distantes e as próximas do crime e não apenas os disfunciamentos da justiça. Percebi quanto longe estamos de uma boa sociedade.
Desse dia lembro também que, quando o absurdo reina, a humanidade se lhe contrapõe nos pequenos gestos, como o dos polícias que me permitiram ver com eles parte do jogo do triunfo do Futebol Clube do Porto em Sevilha enquanto esperava a retoma do interrogatório.
É inultrapassavelmente verdade que a justiça é humana e há-de sempre ser vulnerável ao erro. Mas não esqueçamos nunca a parte seguinte da frase de São Agostinho, que acrescenta que persistir no erro já é diabólico.
Gostava de acreditar que a justiça dá hoje em Portugal garantias de que tudo fará para que mais ninguém viva o dia do triunfo do absurdo sobre a sua vida. Poderia então esquecer o dia 21 de maio ou recordá-lo pelo golo do Derlei.
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