A senhora da mesa em frente não podia contrastar mais comigo. Ela era uma dirigente que tinha acompanhado todas as reformas da segurança social no Portugal democrático, eu um jovem vindo da universidade e, achava ela, do abominável mundo das jotas. Ela achava que eu me perguntava o que estava ela ali a fazer e eu achava que ela se perguntava o que saberia eu do tema para estar ali.
Mas foi amizade à primeira vista, forte e para sempre. Sobre trabalho digo apenas que ela foi a pessoa da velha máquina da segurança social que mais aberta se mostrou às heterodoxias da então batizada nova geração de políticas sociais do governo de António Guterres. E que grande aliada para virar do avesso a política de luta contra a pobreza ali tivemos. Sobre experiências de vida, lembro apenas que era uma mulher licenciada em direito e profissional do tempo em que em Portugal uma mulher não podia abandonar o país sem autorização do marido e sempre foi uma mulher emancipada. E que lições sobre o que o 25 de Abril trouxe ao quotidiano das mulheres aprendi com ela. Sobre a nossa amizade não consigo dizer nada, a não ser que lamento profundamente tê-la cultivado tão mal nos últimos anos. E que força ela me deu, só pela presença sem interrupções ou hesitações do seu sorriso.
Um dia, já ela reformada, convidei-a para um trabalho no Chade e disse-lhe na mensagem que era a altura de irmos tomar um chá no deserto. Não foi, mas esteve disponível e começámos aí a adiar uma conversa que nunca faremos. Há poucas semanas, percebo agora que já não o esperava, recordou-me que lhe devia um jantar há anos.
Nesse jantar ou nesse chá ter-lhe-ia dito que gostava de envelhecer a olhar para a vida como ela olhava, com o sentido de humor que não perdeu, com a capacidade que tinha de reinventar causas e se agarrar ao futuro e não ao que estava feito. imagino que me respondesse com o seu "ó menino, olhe que...".
Esse jantar com a minha mais velha amiga, Elza Chambel já não vai acontecer. Mas ainda hei-de tomar o chá no deserto que prometemos um ao outro.