12.5.20

Para que uma emergência de saúde não se torne numa crise educativa

A necessidade de fechar as escolas por razões de saúde pública trouxe um enorme desafio ao sistema educativo, ao qual os países têm procurador responder de diversas formas. Entre as linhas de clivagem principais que encontramos nas respostas encontradas surgem principalmente duas, uma em torno de como usar de modo útil este tempo de parêntesis na vida social normal, outras em torno de quanto afastar as soluções a encontrar para o uso desse tempo útil da pretensão de prosseguir o ano letivo «como se» estivéssemos numa situação normal.
Em particular nos ensinos básico e secundário, o paradigma educativo sobre o qual se trabalha em todo o mundo é o da copresença na sala de aula. Sobre essa matriz estruturante existe uma multiplicidade de estratégias pedagógicas, até agora complementares, que vão das mais conservadoras, como os tradicionais trabalhos de casa que pressupõem forte supervisão parental até às mais inovadoras, de promoção do trabalho autónomo dos alunos, de pesquisa e descoberta, de atenção ao mundo, tendo pelo meio as que a industria de conteúdos educativos foi desenvolvendo e que, entre nós, tendem a estar mais perto do modelo conservador, apenas em novos suportes. 
Em outros artigos deste dossier dá-se conta de como escolas e professores têm construído práticas e situações inovadoras, mesmo que partindo de uma situação de escasso acompanhamento e quase nula orientação para esse esforço. Essas boas práticas não surpreendem quem esteja minimamente familiarizado com o trabalho de muitos professores em muitas escolas que, muitas vezes remando contra a maré das próprias políticas educativas e das pressões exteriores, sempre desenvolveram práticas pedagógicas inovadoras e se responsabilizaram por conseguir chegar da melhor forma possível a todos os seus alunos.
Na emergência em que se fechou o segundo período de aulas parece consensual dizer que predominou a capacidade localizada de iniciativa e que onde ela não existiu escassearam as respostas que chegassem aos alunos. Alunos houve – não disponho de dados que me permitam fazer quantificações – que tiveram acesso a atividades bem estruturadas que lhes permitiram continuar a trabalhar e conseguiu evitar-se a ideia de que se tinha entrado num período de férias por tempo indeterminado. Mas este foi também o tempo de identificar os limites com que se deparam essas práticas e que vão do facto de que há alunos sem acesso à net, a computadores ou mesmo a telefones com ligações de dados, vivendo em famílias que não conseguem dar-lhes apoio ou tendo professores que eles próprios não conseguiram, por razões tecnológicas ou de formação, ou ambas, desenvencilhar-se o suficiente para  tentar chegar aos seus alunos ou conseguir fazê-lo de modo eficaz. Seria irrealista pensar que as boas práticas que devemos sublinhar são o retrato universal do sistema e de que as escolas que conseguiram organizar-se para apoiar os seus alunos tendem a cobrir todo o universo das escolas ou ainda que, onde uns e outras funcionaram, chegaram à generalidade dos alunos.
Mas não devemos ser severos com a capacidade de resposta em situação excecional. O que se fez foi muito bom e cumpriu o objetivo essencial de dizer que a escola não pararia. Temos, contudo, que olhar de modo diferente para o que resta deste ano letivo e para o modo como vai ser lançado o próximo. 
O Governo preparou e apresentou perto do fim das férias da Páscoa o seu plano. Um plano sensato, prudente e participado. No imediato recebeu a concordância generalizada de representantes de professores, direções de escolas e pais. Não é sucesso pequeno para quem agiu em pouco tempo, sob pressão e com grandes níveis de incerteza sobre o que viria a seguir.
Assumiu-se com coragem a situação de exceção em diversos domínios, eliminando provas cujo sentido estava posto em causa neste contexto, tomando decisões como a de desconectar a conclusão do ensino secundário do acesso ao ensino superior e não negando que há um problema de acesso dos alunos aos conteúdos pelos meios de difusão online em que se apostou na resposta imediata.
Podemos apontar o dedo à década perdida por se ter acabado com o Plano Tecnológico para a Educação ou ir mais longe e interrogarmo-nos porque deixámos silenciosamente definhar nos serviços centrais do Ministério da Educação as competências de apoio à inovação educativa de que agora tanto necessitaríamos. Mas esse exercício não nos ajudaria a encontrar uma resposta na crise e a autocrítica foi, na prática, feita de imediato pelo Primeiro-Ministro quando veio, em cima dos acontecimentos, anunciar uma nova ambição, comprometendo-se agora com um salto em frente em acesso a tecnologias para fins educativos que pode tornar-se num dos efeitos laterais positivos desta situação tão negativa.
A resposta do Ministério da Educação para o acesso básico aos conteúdos foi realista. A opção por difundir momentos de apoio ao estudo, pela televisão, da responsabilidade de escolas, num canal que está disponível por todos os meios possíveis – TDT, cabo, internet – e a promessa de procurar chegar a todos os alunos, mobilizando até os CTT, expressam uma real preocupação com a abrangência do acesso a material relevante para que os alunos possam continuar a desenvolver atividades significativas e a extrair o máximo de benefícios possível superando até onde é razoável esperar que se consiga os constrangimentos que vivemos.
Mas é ilusório pensar que, tendo de suspender por exemplo o trabalho que havia nas escolas de prevenção e combate ao insucesso educativo, recorrendo aos pais como educadores auxiliares, conhecendo as profundas assimetrias escolares e sociais destes, permitirá que os novos conteúdos curriculares a lecionar neste terceiro período cheguem aos alunos com uma desigualdade de oportunidades (que sempre existiu, já sabemos) minimamente mitigada. Uma escola básica sem sala de aulas e parcialmente devolvida às famílias é ainda mais socialmente injusta que sempre foi.
Em torno deste ponto, muitos pedagogos pensam – e eu acompanho-os – que é irrealista apostar em usar este tempo para lecionar novos conteúdos, ou pelo menos, acreditar que esses novos conteúdos podem ser considerados como lecionados. Esses pedagogos – e, de novo, acompanho-os – preferem que usemos este tempo para desenvolver atividades dotadas de sentido, que podem incluir novos conteúdos, mas estejam centradas em consolidar aprendizagens, estimular o trabalho autónomo e o sentido crítico, refletir sobre o mundo. Não é necessário que se adote uma aproximação a esta tensão a preto e branco. Uma boa mistura das duas dimensões pode conseguir responder às ansiedades de famílias e professores obcecados com os conteúdos e responder também às necessidades dos alunos, crianças e jovens confinados em casa por algo que não percebem completamente e pode infundir perceções sobre o mundo que importa prevenir e combater.
Seria perverso se acabássemos a viver uma ilusão de normalidade que não foi completamente fechada pelos anúncios já feitos pelo governo. Nomeadamente seria absurdo que se facilitasse a retenção de alunos que não terão acesso adequado aos meios e condições de estudo nos meses que faltam para a conclusão do ano letivo. Se os alunos do ensino básico não vão voltar à sala de aula nem beneficiar daquilo que ao longo de década já tínhamos adquirido para combater o risco de insucesso, seria cruel que a escola aceitasse penalizá-los e, para além de não mitigar desigualdades, fosse agora um agente ativo de exclusão. Dirão alguns que esta posição resvala para o tão fácil de atacar «facilitismo» de que os neoelitistas tanto gostam. Mas não é verdade. Esta posição, obriga isso sim a desenvolver agora o que ainda está indefinido e que é, julgo, o fulcro da verdadeira resposta que necessitamos do governo para que a emergência de saúde pública não se torne numa crise educativa – a adaptação necessária no lançamento do próximo ano letivo. 
O Governo - e deve ser aplaudido por isso – já anunciou que está a trabalhar na adaptação do início do próximo ano letivo às condições precárias em que este será concluído. O sucesso dessa operação é vital e é no seu desenho, sem improviso e com sentido de inclusão social, que reside a esperança em que não seja a saúde pública um fator brutal de agravamento dos efeitos escolares da desigualdade social.
Nesta reflexão deixei à margem a questão que provavelmente mais «mexe» com o governo e a opinião pública que é a das condições de ingresso no ensino superior. Não é o momento de reavaliar esse sistema, mas é o ponto em que a resposta do governo parece mais frágil, dada a incapacidade de o adaptar à situação excecional que vivemos, a tentação de fazer meros ajustamentos de pormenor a provas que estavam feitas em janeiro, como se não tivéssemos atravessado um furacão desde então. Parece que tudo se resolve com pequenos deslizes de calendário e provavelmente um simulacro de aulas presenciais que agora parece adequado, mas quando chegar a hora será fortemente contestado no seu sentido e utilidade. Oxalá me engane, mas mais uma vez se demonstra que o ensino secundário está concebido como máquina de exclusão – repare-se que não há nada de substancial anunciado para o apoio a estes alunos – e que o ingresso no ensino superior é apenas um filtro social, baseado na ilusão napoleónica do nivelamento pelos exames. Mas o sistema está tão injustamente concebido que se percebe a impotência do governo. Creio que nem um terremoto faria os guardiões do templo do ensino superior abrir-se â pluralidade da educação contemporânea.

(Artigo publicado no Jornal de Letras de 22 de abril de 2020, num dossier da tertúlia Inquietações Pedagógicas)

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