10.12.15

A lotaria das faturas

A Fatura da Sorte é um incentivo ridículo ao cumprimento das obrigações fiscais. A transformação da cidadania fiscal em jogo de azar é o equivalente de introduzir um sorteio entre os eleitores que votam para combater a abstenção.
Descontinuar a lotaria das faturas seria um sinal aos eleitores de ruptura com a política fiscal anterior que parece que não vai ser dado.

2.12.15

Observatório das votações: em Novembro de 2015, no Parlamento, todos contra a direita ou todos juntos

O primeiro mês de funcionamento do novo Parlamento mostrou, nas votações, o isolamento da coligação de direita face a todas as outras forças parlamentares, constituindo  o PSD e o CDS, para já, uma nova minoria e todos os outros partidos, PAN incluído, uma nova maioria. Nas 44 votações realizadas em Novembro de 2015, as dinâmicas políticas foram as seguintes:

Nos grandes debates políticos do mês, a nova minoria não conseguiu o apoio ou a abstenção de nenhuma outra força parlamentar, como se registou nas seguintes votações:
  1. Rejeição do XX Governo Constitucional
  2. Revogação de medidas sobre Interrupção Voluntária da Gravidez,
  3. Adopção por casais do mesmo sexo
  4. Plano ferroviário nacional
  5. Prorrogação de receitas no OE para 2015
  6. Eliminação de exames nacionais do 1º ciclo
  7. Recomendação de estudo da Constituição na escolaridade obrigatória

A segunda dinâmica política mais forte foi a do funcionamento por consenso, com votações por unanimidade em votos de pesar, pedidos de descida à comissão sem votação de certos diplomas e em matéria de funcionamento da Assembleia.
As mais relevantes excepções a esta dinâmica foram as votações sobre compromissos externos de Portugal (com votos favoráveis do antigo arco da governação) e as votações em que o PAN se juntou à direita (recomendações ao governo, compromissos europeus e extensão de medidas orçamentais para 2016).
Registou-se ainda que as coligações pré eleitorais continuam sólidas: PSD e CDS, por um lado e PCP e PEV, por outro, votaram sempre da mesma forma.

23.11.15

Surpreendam. Derrotem Cavaco Silva. Depressa.

O Presidente da República só a contragosto nomeará um governo do PS, como já sabíamos. 
Hoje, finalmente, ao pedir clarificações, disse ao povo que está a trabalhar na solução com maioria parlamentar que o PS lhe apresentou. Saudemos esse ponto.
Mas as clarificações solicitadas são pouco mais que a reprodução de um caderno  reivindicativo da direita, infelizmente.
Há muitas formas de a esquerda parlamentar lhe responder. Mas a mais forte e definitiva era um Programa conjunto de governo, abrangente e subscrito pelos partidos que o apoiam. Bem sei que Cavaco lança estas questões porque as suas fontes acham impossível encontrar uma solução com todos os partidos que rebata todos os itens que apresenta.
Só espero - e acredito - que as esquerdas o surpreendam e façam de Cavaco Silva, mais uma vez, o catalisador de um entendimento forte que, talvez, sem os passos que ele deu depois das eleições, fosse bem mais difícil do que é hoje.
E, ao prolongar a crise, Cavaco disse aos portugueses que pensa que toda a estabilidade é necessária, desde que seja a sua.
Se Cavaco Silva é o porta-voz da direita, então há que olhar para ele como adversário que é - e derrotá-lo. Depressa.

12.11.15

A culpa é sempre da Constituição

A direita portuguesa sempre que tem uma pedra no caminho, um problema, ou mesmo um pequeno contratempo, procura uma panaceia e vai sempre dar ao mesmo... rever a Constituição que o PPD, com o PS, o PCP, o MDP e a UDP aprovou. 
Os constituintes sabiam muito mais de sistema democrático, de checks and balances e de governabilidade que os aprendizes de feiticeiro da actual direita todos juntos.
O que a direita que por aí anda ainda não percebeu ou ainda não acredita ser  possível é que podia um dia ser dispensável para fazer uma maioria. 
Ainda que durasse só um dia, esta experiência já teria valido a pena, só por ter demonstrado que todos os deputados sem excepção podem apoiar um governo, se o quiserem e até quererem.

PS. Esta lição também vale para os socialistas que sempre defenderam alianças à esquerda até - e só até - ao dia em que elas se tornaram possíveis.

6.11.15

Para vencer a exclusão dos deficientes

Esta manhã, num seminário da CERCIOEIRAS, pediram-me que falasse de políticas para a integração de deficientes.
Numa sociedade decente esta política não seria necessária, porque os deficientes, como os outros, realizariam o seu potencial e seriam aceites por si e pelos outros com as suas potencialidades e os seus limites. Não haveria exclusão.
No mundo contemporâneo não é assim. As pessoas com deficiência são mais vulneráveis à pobreza, têm menos oportunidades de educação, menos emprego, mais precaridade no emprego e mais desemprego.
Como pode agir-se para vencer esta situação? 
Há três grandes adversários, como dizia o relatório sobre os direitos humanos das pessoas com deficiência apresentado este ano à Assembleia Geral da ONU: o paternalismo, a dependência e a segregação. 
Há, hoje, entre nós, três grandes prioridades políticas para inverter a situação.
A educação é o grande factor de autonomia das pessoas com deficiência. Os mais educados estão mais empregados, são menos pobres e participam mais na vida colectiva. Mas a resposta às necessidades educativas das pessoas com deficiência é um parente (muito) pobre da política educativa.
Os problemas de acessibilidade, ligados à necessidade de conceber o espaço público como amigo das pessoas com deficiência continua a confinar as pessoas com deficiência a mundos limitados. As dificuldades nos transportes, as barreiras arquitectónicas, os obstáculos à mobilidade em geral são grandes inimigos da participação dos deficientes na vida pública. Mas a acessibilidade física, com excepção da eliminação das barreiras arquitectónicas mais óbvias continua a ser um parente (muito) pobre das políticas públicas.
Ser deficientes implica custos acrescidos que se reflectem nos cuidados e serviços necessários, nas tecnologias assistidas necessárias, nos custos de mobilidade, etc mas a protecção social não se foca adequadamente na compensação desses custos, nomeadamente para os deficientes oriundos das classes médias,aumentando muito o risco de pobreza. Mas, a protecção social dos deficientes está Penas centrada nas pessoas já em situação de pobreza ou de falta de rendimentos.
E, finalmente, tudo isto acontece porquê? Porque somos uma sociedade que exclui os deficientes, se mobiliza pouco para garantir que as políticas públicas consigam promover a sua cidadania plena. E este é o primeiro dos problemas a vencer.

3.11.15

Há pressão excessiva sobre o acordo político à esquerda

Anda por aí uma onda de exigência desmedida sobre o primeiro entendimento político entre os partidos de esquerda em quarenta anos de democracia.
Ouço muitos amigos bem intencionados dizer-me "tem que resultar, senão é o fim da esquerda para décadas". Para não falar dos outros que exigem um acordo blindado para a legislatura como espécie de última esperança de que não venha a haver acordo nenhum.
É claro que quero e gostaria que um acordo político de esquerda durasse uma legislatura inteira. Mas não me reconheço nesta exigência acrescida que é uma forma reflexa de complexo de inferioridade do diálogo político à esquerda.
Tomemos os acordos políticos de direita, os únicos que verdadeiramente têm tradição, como primeiro exemplo de comparação. Com maioria absoluta no Parlamento, Francisco Pinto Balsemão não conseguiu levar a primeira AD ao fim da legislatura que começou em 1990. Marcelo Rebelo de Sousa, que formou a Segunda AD com Paulo Portas não conseguiu sequer levá-la até eleições, dissolvendo-a em vésperas de apresentação de listas ao Parlamento Europeu. Pedro Santana Lopes, que recebeu a coligação PSD-CDS de Durão Barroso, conseguiu afundar-se tanto num governo incompetente com Paulo Portas que depois de demitido por Jorge Sampaio levou a direita ao seu pior resultado eleitoral de sempre.
Ou seja, os entendimentos de direita só conseguiram acabar uma legislatura à quarta tentativa.
Para os que preferem o exemplo dos governos liderados do PS, a razão para ser superexigente com a coligação de esquerda também não é óbvia. Mário Soares não conseguiu acabar nenhuma legislatura como Primeiro-ministro. Na primeira caiu às mãos dos seus aliados do CDS e em 1985 por iniciativa da pressa de "ir ao pote" do novo líder do PSD, Cavaco Silva. António Guterres conseguiu acabar uma legislatura, mas caiu desgostoso com um resultado autárquico e incomodado com os orçamentos limianos. E José Sócrates sucumbiu em 2011 à tenás esquerda-direita a propósito do PEC IV. Em seis governos minoritários do PS ou de coligação deste com a direita, em cinco legislaturas, apenas um acabou a legislatura (o de 1995-1999).
Então porque é tão alta a pressão sobre o acordo que aí vem? Porque há muita gente com medo do que mudará se resultar.
Era bom que o governo durasse uma legislatura, mas o que é essencial é que governe bem e com as prioridades acertadas pelo tempo que governe. E, se falhar, que implique aprendizagem suficiente para que, tal como aconteceu com as outras fórmulas políticas, o próximo não repita os erros que se cometam agora.

29.10.15

Sem emprego nem desempregados?

Disciplinar o trabalho demorou muito tempo e consumiu muitas energias. O trabalho saiu de casa para se exercer num espaço próprio, num certo horário, protegido por um contrato específico, conferindo direitos associados e nasceram as sociedades do assalariamento.
Agora, talvez todo este edifício ameace voltar a ruir e o trabalho a ocupar todas as nossas vidas, rompendo os diques em que o contivemos. Mas tal pode ocorrer no contexto de transformações tais que uma parte do trabalho seja apropriado pelas chamadas máquinas inteligentes e outra aconteça dentro do nosso quotidiano, destruindo o lazer, fazendo de muito do nosso tempo um tempo "de venda". Ou seja, diz Branko Milanovic, ficando nós sem trabalho (o nosso trabalho clássico) e não desempregados (porque vamos transformar todo o nosso tempo em tempo comercial, conduzindo para a Uber, alugando quartos, etc, etc).
Aqui fica uma descrição do cenário (e um convite a ler o texto todo):

"one scenario that would combine lots of labor substitution with heavy segmentation of tasks (and much more intense labor discipline made possible thanks to automation). In that case, jobs to which we have become accustomed would cease to exist: lots of today’s functions will be automated, and for many others, “amateurs”, not professionals, would do them.   
And we should not be making the “lump of labor” fallacy: the amount of jobs is not limited to the jobs that we know today. There will be entirely new jobs that we cannot even imagine. 

(...)
Technology will create new jobs, and if anything, I think we shall have more to worry about not having any free time than having too much. As commercialization of our lives progresses, we  shall perceive (as we already do) every hour spent, without directly or indirectly contributing  to more money as wasted. Unemployment will become impossible. Being unemployed implies that you are specialized and that there is a (relative) shortage of such specific jobs.  But not so in a new economy: everybody can carry Thai food from one place to another, everybody can exhibit himself or herself naked on the Internet, everybody can open doors, pack bags, or even write blogs. No one would be unemployed and no one would hold a job.

26.10.15

"Onde estavas tu...?"

Vemos, ouvimos e lemos coisas... Por vezes perguntamo-nos, com alguma amargura, "onde estavas tu no 25 de Abril?". E cada um de nós tem o seu próprio 25 de Abril no espírito ao pensá-lo. E cada um de nós tem o dever de se libertar dele para continuar a ser capaz de separar bem o que está certo do que está errado. O que está certo são as boas ideias e não o sítio onde as pessoas estiveram na  esquina anterior da história em que elas estiveram em causa. Pensando assim pode olhar-se mais positivamente o futuro, seja a pensar o governo, a justiça, quaisquer outras instituições ou simplesmente a viver as  nossas vidas quotidianas.

22.10.15

Cavaco Silva lamenta não tutelar o PS.

Ao invés da leitura dos resultados eleitorais que lhe competia, Cavaco Silva aproveitou o discurso de hoje para se lamentar publicamente por não exercer tutela sobre a direcção do PS. Mas acrescentou que a alternativa dos partidos à coligação de direita é "claramente inconsistente". 
O PS, o PCP e o BE têm poucos dias para demonstrar aos portugueses que a avaliação de Cavaco Silva é errada e a sua tentativa de condicionar os deputados é vã, sob pena de lhe darem a posteriori a razão que não lhe assistia - confio - quando falou.

16.10.15

A diferença entre um acordo e uma negociata

A diferença entre um acordo e uma negociata reside na solidez política da solução a que chega. A simples promessa entre partidos de viabilização dos Orçamentos de Estado seria ainda uma negociata, já a aceitação de um conjunto de medidas nucleares para a legislatura, essenciais à estratégia nacional para o crescimento sem comprometer unilateralmente a presença no Euro, seria o patamar mínimo para um acordo político.
Se António Costa se contentasse com uma negociata à esquerda acabaria a dar corpo à maioria negativa, sem programa nem objectivos, que recusou na noite eleitoral.
Se o PCP e o BE recusassem um programa comum mínimo para a legislatura acabariam a dar razão ao que Sérgio Sousa Pinto disse sobre serem desde sempre e na visão dele para sempre adversários e não potenciais aliados do PS.
Se António Costa conseguir um acordo para um programa mínimo para a legislatura, para além de dar à esquerda uma oportunidade para desbloquear o sistema político, dá aos portugueses uma oportunidade de testar uma alternativa e remete ao ridículo os comentários apocalípticos que por aí pululam. Para além de que dá ao PS a oportunidade de se livrar das tentações de desvio para o centro, que é uma maneira polida de dizer deslizamento para a direita.


(Publicado no Facebook)

13.10.15

As esquerdas que querem mudar o mundo sabem nadar



Francisco Louçã não me percebeu. Problema dele e meu. Espero que não me imaginem a fazer ultimatos de fidelidade a ninguém, menos ainda ao BE, a quem nunca fiz juras de amor. Mas se imaginam, problema vosso. Desejo apenas que as e os dirigentes do BE percebam melhor António Costa, que conta com eles para mudar o país, do que Louçã me percebeu a mim, que analiso o actual quadro político apenas com as minhas convicções. E que não deixem de atravessar o Rubicão por receio de se afogarem. 
As esquerdas que querem mudar o mundo sabem nadar. As outras são puras nas suas certezas e pequeninas na sua capacidade de influenciar.

(Publicado no Facebook)

Pensamento pós-PREC

A possível alternativa ao governo da PAF exige pensamento pós-PREC. Oxalá os nostálgicos do PREC saibam remeter-se ao seu anacronismo.

8.10.15

Com mandato para descontinuar governo de Passos Coelho, a nova maioriaterá que formar-se em bases sólidas

As eleições legislativas não são um campeonato de futebol, em que o primeiro é o vencedor. 
As forças vencedoras de uma eleição são as que expressam a maior vontade comum possível. Por isso a Constituição pede ao Presidente da República que indigite o Primeiro-Ministro tendo em conta os resultados eleitorais e não gera nenhum automatismo de indigitação da força mais votada.
Dir-me-ão que até hoje, entre nós, os Primeiros-Ministros sempre vieram das forças eleitorais vencedoras. Não é, contudo, verdade, pois já houve os governos de iniciativa presidencial, que nem sequer vieram dos partidos. Mas, se o fosse, seria por mera razão circunstancial, já que o Parlamento português esteve até agora bloqueado pela exclusão absoluta do PCP das hipóteses de formação de governo, exclusão imposta também a ou aceite pelo Bloco desde que passou a ter representação parlamentar.
Essa circunstância é, aliás, uma especificidade portuguesa, não seguida pela generalidade dos países que têm um sistema eleitoral proporcional. Há hoje vários países da Europa em que o primeiro-ministro lidera uma coligação formada pela segunda força mais votada e seus aliados, depois de isolada a força colocada em primeiro lugar.
Há mesmo precedentes históricos tão importantes quanto a chegada ao poder na Alemanha de Willi Brandt à frente de uma coligação com os liberais, depois de a CDU ter sido a força mais votada. E esse governo teve enorme relevância mundial.
No nosso sistema, cabe aos partidos interpretar o mandato que o povo lhes deu e agir no respeito desse mandato. O PS disse claramente que queria um mandato para governar diferente de e sem Passos Coelho. Ao afastar-se disto desrespeitaria o voto que pediu. Pode respeitar esse voto na oposição ou formando uma maioria nova. E é aqui que a história está a acontecer.
A grande mudança a que estamos a assistir e que parece que muitos ainda não perceberam que está mesmo a acontecer resulta de o PS há um ano ter rejeitado a exclusão do PCP e do BE das responsabilidades governativas e de o Comité Central do PCP ter esta semana levantado a auto-inibição que o PCP se tinha reflexamente imposto desde o 25 de Novembro.
Com estas mudanças passou a ser possível haver uma alternativa maioritária no parlamento à coligação de direita, caso o Bloco não pare agora o relógio da história que Costa e Jerónimo puseram a andar.
Mas não podem o PS, o PCP ou o BE ter ilusões sobre o que se está a passar. 
Mudar o rumo da história é sempre mais difícil que deixar-se levar na corrente das tradições.
O possível entendimento destas forças não resulta de uma vitória esmagadora e os resultados eleitorais permitem leituras contraditórias, forçando a que todas as suas interpretações reflictam as perspectivas políticas dos seus autores.
O escrutínio político e mediático de um entendimento entre PS, PCP e BE será intenso e na fase inicial hostil, porque baseado em teoremas que as pessoas entenderam como axiomas e transformaram em leis políticas sobre a impossibilidade de uma relação de cooperação a nível nacional do PS com as forças à sua esquerda.
O PS será atravessado pela fractura identitária entre os que o reconhecem essencialmente como a garantia de que os comunistas nunca chegarão ao  poder e os que nele se revêem como força lider das esquerdas portuguesas.
No BE, certamente, talvez também no PCP, as visões mais sectárias tudo farão para desestabilizar um acordo de legislatura com o PS, o mesmo acontecendo com a ala direita do PS.
Por tudo isto, um entendimento entre o PS, o PCP e o BE que seja frouxo, dissimulado ou desresponsabilizador de qualquer das partes conduziria os seus autores ao descrédito e a esquerda a um beco sem saída.
Na minha visão, o PS tem a obrigação de não deixar que subsista qualquer dúvida de que está convicto de que recebeu dos portugueses um mandato para descontinuar o governo liderado por Passos Coelho e não para o suavizar. Mas o PCP e o BE não podem deixar que haja qualquer sombra de dúvida de que não estão a negociar entendimentos com reserva mental ou vontade de tergiversar.
A questão política de fundo que legitima as conversações entre a esquerda é simples. A coligação de direita está isolada e teve a rejeição da maioria dos eleitores do país.
Agora é preciso confiança entre os partidos para que o processo tenha qualquer seguimento. E essa confiança passa por dizer aos portugueses em que é que o programa de coligação de esquerda se baseia, quais são as cedências recíprocas e qual é o resultado final comumente aceite. 
Como passa necessariamente pela vinculação dos subscritores de um acordo para uma maioria de esquerda ao exercício de  funções governativas. 
Não nos iludamos. Ou muda tudo na relação entre os partidos de esquerda ou esta  negociação é um mero fogo fátuo.
O sucesso deste entendimento não será a formação de um governo, será a capacidade de levar esse governo até ao fim da legislatura, mudando de política, conseguindo crescimento económico e fazendo diminuir as desigualdades.
António Costa, Jerónimo de Sousa e Catarina Martins têm uma tarefa histórica em mãos. Ou a realizam com sucesso ou são esmagados por ela e fica tudo como dantes.

7.10.15

Será mais brevemente do que parecia que a esquerda vai atravessar o rubicão?

Os resultados eleitorais acabaram por acelerar uma transformação que pode ser profunda no espectro político português. 
O comportamento do Presidente da República para o qual a designação de "atípico" é um eufemismo respeitoso, se visava pressionar o PS a aceitar o entendimento com Passos Coelho teve o condão de o tornar mais difícil e mais impopular ainda.
Os discursos públicos do PCP e do BE permitem pensar que desbloquear a esquerda é agora - como nunca antes o fora - uma possibilidade que merece ser equacionada.
A recusa do PS em enfeudar-se à viabilização de um governo com políticas contrárias às suas ao mesmo tempo que pela primeira vez na história da democracia força o PCP e o BE a clarificarem se estão prontos a passar da retórica à construção de alternativas, faz funcionar o nosso sistema político assente na proporcionalidade do modo para o qual foi concebido, como gerador de coligações parlamentares alternativas.
É certo que a campanha eleitoral não deu ao BE e ao PCP um mandato claro para renunciar à renegociação unilateral da dívida nem para comprometer estes partidos com metas políticas compatíveis com a permanência de Portugal no Euro.
Mas cabe a estes partidos interpretar o que os eleitores lhes quiseram dizer no voto. terão os eleitores do PCP e do BE votado para sair do euro ou para que estes partidos garantissem a saída de Passos Coelho e o fim do ciclo de "ir além da troika"? 
Eu tenho umas ideias sobre isto, mas aguardo com ansiedade democrática para ver se é desta que o PCP e o BE atravessam o rubicão ou fica tudo como dantes. E, se ficar, não venham dizer que é por causa do PS.

6.10.15

A austeridade ganhou ou perdeu as legislativas? E vai ganhar ou perder as presidenciais?


Há duas perguntas incómodas mas a meu ver decisivas na interpretação dos resultados eleitorais de domingo e na escolha dos caminhos políticos nos meses que aí vêm. A austeridade ganhou ou perdeu as eleições? Se perdeu, há capacidade política e apoio popular suficientes para lhe gerar alternativas políticas nesta legislatura?
Se a austeridade tiver perdido, como acho que perdeu, a prioridade principal é a da construção de alternativa consistente e com apoio popular à essa austeridade, o que o "quadro macro-económico" do PS manifestamente não conseguiu e implicaria muito trabalho político, com espíritos abertos em toda a esquerda, que está por fazer.
Se as esquerdas escolherem o caminho da construção de alternativas, o modo como se relacionam com as candidaturas presidenciais é uma grande prioridade imediata. Vai Portugal eleger um Presidente da República solidamente comprometido com as alternativas à austeridade ou vai escolher um Presidente que referende o caminho actual?
O empenhamento das esquerdas nas presidenciais e a capacidade política para gerir o caminho que escolherem vai determinar se o pêndulo está ainda a balançar contra o PSD+CDS ou se está já de regresso ao crescimento da direita.

(Publicado também no Facebook)

8.8.15

Se o CDS abdicou de ter voz, a escolha foi sua.

O PSD e o CDS concorrem às legislativas em coligação, com o mesmo programa eleitoral e em listas únicas. A coligação escolherá naturalmente os seus representantes em cada acontecimento da campanha eleitoral.
Se a coligação PSD-CDS designou Pedro Passos Coelho, líder do PSD, para a representar fez a escolha que parece racional. em teoria podia ter feito outra e escolher Paulo Portas. Já a pretensão do CDS de que a coligação a que pertence tenha a vantagem eleitoral que resulta da junção dos partidos sem a perda de autonomia do seu partido, que fingiria nos debates eleitorais que é uma força autónoma neste acto eleitoral, é uma tentativa patética de manipular as regras do debate democrático.
Se o sistema democrático português perde pluralismo nestas eleições por não se ouvir o CDS, como diz este partido, isso deve-se à sua escolha de abdicar da voz para tentar não perder o poder. 

20.5.15

Um chá no deserto

Raramente temos na vida uma colega de carteira que podia ser nossa mãe. Eu tive. Em 1995, nas instalações improvisadas numa semana para sede do novo Ministério da Solidariedade Social, como o mais novo e o mais velho membros do Gabinete do Ministro Ferro Rodrigues.
A senhora da mesa em frente não podia contrastar mais comigo. Ela era uma dirigente que tinha acompanhado todas as reformas da segurança social no Portugal democrático, eu um jovem vindo da universidade e, achava ela, do abominável mundo das jotas. Ela achava que eu me perguntava o que estava ela ali a fazer e eu achava que ela se perguntava o que saberia eu do tema para estar ali.
Mas foi amizade à primeira vista, forte e para sempre. Sobre trabalho digo apenas que ela foi a pessoa da velha máquina da segurança social que mais aberta se mostrou às heterodoxias da então batizada nova geração de políticas sociais do governo de António Guterres. E que grande aliada para virar do avesso a política de luta contra a pobreza ali tivemos. Sobre experiências de vida, lembro apenas que era uma mulher licenciada em direito e profissional do tempo em que em Portugal uma mulher não podia abandonar o país sem autorização do marido e sempre foi uma mulher emancipada. E que lições sobre o que o 25 de Abril trouxe ao quotidiano das mulheres aprendi com ela. Sobre a nossa amizade não consigo dizer nada, a não ser que lamento profundamente tê-la cultivado tão mal nos últimos anos. E que força ela me deu, só pela presença sem interrupções ou hesitações do seu sorriso.
Um dia, já ela reformada, convidei-a para um trabalho no Chade e disse-lhe na mensagem que era a altura de irmos tomar um chá no deserto. Não foi, mas esteve disponível e começámos aí a adiar uma conversa que nunca faremos. Há poucas semanas, percebo agora que já não o esperava, recordou-me que lhe devia um jantar há anos.
Nesse jantar ou nesse chá ter-lhe-ia dito que gostava de envelhecer a olhar para a vida como ela olhava, com o sentido de humor que não perdeu, com a capacidade que tinha de reinventar causas e se agarrar ao futuro e não ao que estava feito. imagino que me respondesse com o seu "ó menino, olhe que...". 
Esse jantar com a minha mais velha amiga, Elza Chambel já não vai acontecer. Mas ainda hei-de tomar o chá no deserto que prometemos um ao outro. 












6.1.15

Sobre o óbito do arco da governação


A insistência de António Costa na recusa do conceito de arco da governação é uma ruptura de grande impacto na dinâmica do sistema partidário português. Talvez a mais importante desde que Ernesto Melo Antunes garantiu que o PCP permaneceria legal, na sequência do 25 de Novembro. Resta saber que efeitos terá.
Desde 1975 o nosso sistema partidário assentou na ideia de que o PCP estava "naturalmente" excluido do jogo da formação de maiorias parlamentares de apoio a um governo. Esta regra apenas uma vez foi afrontada - na história ainda não completamente esclarecida, da recusa por Mário Soares de indigitar Vitor Constâncio para Primeiro-Ministro depois da moção de censura ao governo minoritário de Cavaco Silva apresentada pelo PRD e apoiada pelo PS e pelo PCP. A lealdade do PCP ao bloco soviético e a sua posição contrária à adesão de Portugal à então CEE eram esteios suficientes para esta marginalização tão imposta pelos partidos do "consenso europeu" quanto desejada pelo próprio PCP.
Se o "arco da governação" rejeitou o PCP, também este sempre procurou fugir dele, mesmo quando teve oportunidades históricas para não o fazer. Um dia conheceremos as hesitações, angústias e bloqueios que impediram a direcção de Carlos Carvalhas de levar mais longe as pontes e processos de diálogo que foram lançados em momentos-chave dos governos de António Guterres e acredito que a defenestração dessa mesma direcção não é alheia a essas discretas e nem sempre ineficazes aproximações.

A marginalização do PCP implicou também que as sensibilidades mais à esquerda no PS fossem empurradas para um impasse táctico. Quem no PS propusesse abertamente um diálogo com o PCP era visto como sustentando um desvio que conduziria inevitavelmente o PS a permanecer na oposição. Esse anátema vive até hoje nas hostes socialistas. PS ganhador é PS em busca do centro. Compreende-se. Com o PCP fora do jogo de formação de maiorias, afastar o PS do centro seria perder espaço eleitoral sem qualquer compensação política expectável.
O crescimento do BE poderia ter desbloqueado a situação, mas não o fez. Apesar da camada superficial cosmopolita, a dinâmica profunda do BE vive dos complexos da extrema-esquerda do PREC e amarrou este partido, para as grandes questões estratégicas, à posição do PCP quanto a possíveis convergências de governo à esquerda. Quantas vezes se pressente que o BE olha para o que o PCP fará antes de definir sequer um sentido de voto sobre uma questão de menor importância. Formalmente o BE não é contra a UE e nem sequer defende a saída de Portugal do Euro, mas nada na sua acção política reflecte essas diferenças, que parecem abismais, face ao PCP.

Em 2002, nos breves meses em que tive alguma responsabilidade política na direcção do PS, bem me lembro da ginástca que colectivamente nos auto-impusemos para obedecer ao cânone do arco da governação e fugirmos ao anátema do "desvio de esquerda" e de como formulámos a posição de que o PS só governaria com quem estivesse com a Europa (para nos demarcarmos dessa esquerda) e com o modelo social (para nos mantermos distantes da direita), de facto, numa altura em que as sondagens não nos davam qualquer hipótse de maioria absoluta, abdicando de tentar formar um governo sólido.

Na verdade, a teoria do arco da governação construiu em Portugal um espaço político tripolar: à direita PSD e CDS, ao meio (para não dizerem que disse ao centro) o PS, à esquerda (que podem adjectivar de conservadora, fixista, etc.) o PCP e depois também o BE. Nesse espaço tripolar, o PS ou governa sózinho (como entre 1976 e 1978, 1995 e 2002 e  2005 e 2011) ou à direita (como entre 1978 e 1979 e entre 1983 e 1985). E esta "lei" nunca foi posta em causa. Aliás, no PS, ponderar sequer cenários de alianças pós-eleitorais tornou-se motivo de quase transformação em inimigo interno, por ser a abertura para a "desistência" de uma maioria absoluta que o PS só teve uma vez em quase 40 anos de democracia.

Mais importante, o sistema político transformou esta tripolaridade numa espécie de triângulo em que cabe ao PS reformar sózinho, apertado sempre por uma tenaz direita-esquerda (muitas leis importantes foram aprovadas pelo PS sózinho no Parlamento com cómoda rejeição com argumentos cruzados da direita e da esquerda). Assim, a direita, quando em maioria, avança no sentido conservador, o PS quando em maioria avança no sentido progressista-realista  e o PCP e o BE ficam isentos de jogar o jogo da definição do futuro, numa especialização de funções muito conveniente para a capitalização de descontentamentos, mas contrária à governação progressista equilibrada.

As declarações de António Costa ameaçam este equilíbrio perverso e prejudicial para a possibilidade de governar Portugal pela esquerda e são um ponto de viragem. Não creio que elas tenham qualquer impacto no comportamento de curto prazo do PCP e do BE em relação ao PS ou em relação à governabilidade do país. Mas têm méritos tácticos e estratégicos e podem, quem sabe, abrir uma janela de oportunidade.

No plano táctico, o PS pode agora dizer aos portugueses que a exclusão do PCP e do BE das eventuais soluções de governo para o país é apenas e só uma auto-exclusão. O que nunca fez com a clareza com que António Costa o faz agora.
No plano estratégico, inicia um degelo necessário entre os partidos de esquerda que há-de dar frutos em futuras direcções, daqui a uma ou duas décadas que seja, quando estiverem verdadeiramente reformados os protagonistas que vêm de 1975. Põe uma porta onde havia uma parede. Algum dia, alguém, a abrirá.
E, quem sabe como reagirão os eleitores à auto-marginalização do PCP e do BE? Perante o anúncio de novas forças partidárias como o partido de Marinho Pinto e o Livre, que apelo terá a posição de que a melhor garantia de controlo da autenticidade das promessas do PS e da fidelidade deste a um rumo progressita é a que é dada por quem se dispõe a trabalhar com ele?  Que capacidade terá, por seu lado, o PS de responder positivamente a agendas políticas próprias de um ou mais potenciais parceiros de coligação com que não tem que concordar mas a cuja acção tem que se acomodar?

Posso errar, mas não tenho dúvidas de que António Costa quer virar uma página na história do sistema partidário português e nas eleições legislativas do próximo ano caberá aos eleitores confirmar ou não a solidez dessa viragem.