“Não sejas burocrata”, disseram-me muitas vezes quando exercia funções públicas e levantava questões a colegas que queriam ver problemas resolvidos, em tempos curtos, com aquela ideia voluntarista de que a bondade dos resultados a atingir se sobrepunha ao rigor dos procedimentos.
A desvalorização dos burocratas foi também um processo que vivi na minha curta carreira política. Muitas vezes desvalorizava-se os serviços da administração publica - e as suas objecções “burocráticas” - a concepção que havia nos gabinetes governamentais de que tudo o que se achava necessário fazer tinha que acontecer, e já, queimando etapas, correndo sempre contra o tempo porque nada podia esperar pelos “burocratas”.
Desde então os serviços da administração publica ficaram mais envelhecidos, menos bem apetrechado e perderam ainda mais importância no governo do pais. OS gabinetes dos membros do Governo habituaram-se a apropriar-se de, diria mesmo, usurpar funções que devem ser dos “burocratas”. E isso permite-lhes terem resultados. Permite-lhes corrigir o efeito de fragilidades dos serviços com que trabalham. Mas também faz com que pessoas que devem exercer funções de confiança assumam funções que devem ser de pessoas que tem carreiras precisamente para as saber fazer.
O peso excessivo dos gabinetes é uma doença da governabilidade em Portugal e como se tornou também numa grande fonte de recrutamento de membros do Governo, é também uma má escola para a definição a longo prazo da fronteira certa entre ser o principal responsável político de um setor e o executor direto das medidas que acha necessárias.
Como gostam de dizer os “burocratas” do Banco Mundial, em que tenho tido o privilégio de trabalhar, o papel do Conselho de Administração é o de tomar as grandes decisões, supervisionar o desempenho, definir e orientar a estratégia, mas não é na cozinha onde se concebem e desenvolvem os projectos e intervenções em concreto.
Não escrevo este texto para participar na crucificação de nenhum assessor de um gabinete em concreto, ou para comentar qualquer membro do governo. Tenho presente no esp’irito muitos e diversos casos da doença de desvalorização dos burocratas que atravessa Portugal.
E acho que é a hora de defender que Portugal precisa de uma nova burocracia, que limite o voluntarismo, corrija a tendência para o erro de quem acha que a sua vontade torna todos os resultados possíveis.
A democracia portuguesa precisa de dar mais poder aos seus burocratas e menos aos que participam na corte que rodeia quem chega ao governo.
28.7.19
Fazer uma requisição civil não é beber um copo de água
Excelente artigo sobre um problema real. O direito à greve não pode ser coarctado sem um fortíssimo motivo que implique que este contenda de modo particularmente grave com outros direitos e necessidades. É certo que há momentos em que há que arbitrar direitos, nomeadamente quando direitos fundamentais entram em contradição, como pode acontecer com o direito à greve e a satisfação de necessidades fundamentais da população. Mas, se os serviços mínimos forem cumpridos - e os sindicatos têm direito a procurar interpretações estritas da sua determinação - a requisição civil não teria fundamento, mesmo que fosse popular, mesmo que fosse uma prova de poder que os populistas adorariam. Mas afastar-se-ia do que se espera de um governo que respeite os direitos dos trabalhadores. E isto é independente de qualquer simpatia ou antipatia por um sindicato ou sindicalista específico. É o respeito pelas regras do jogo que, bem, estão definidas.
Fui Sandinista
Eu era um estudante de sociologia, nos anos oitenta, Portugal era governado em Bloco Central, Mário Soares glorificava na Europa a visão de Ronald Reagan para a América Central e promovia Eden Pastora, o “comandante zero”, com o hoje desaparecido da vida pública, mas então influente Rui Mateus. E eu era um jovem Sandinista,
Peretencia a um coletivo, criado no âmbito do CIDAC, chamado GSAL (Grupo de Solidariedade com a América Latina), onde conheci algumas das melhores pessoas com que me cruzei em toda a minha vida.
Todos os anos, a 19 de julho , comemorávamos a revolução Sandinista, esse momento fundador de uma liberdade alternativa na América Central, que derrubara o ditador Somoza, criará um regime pluralista, aberto, orientado pelo povo, socialista e cristão, que dava voz à diversidade e até tinha um poeta e padre, Ernesto Cardinal, como um dos seus ícones e ministros. Li os seus poemas com amigos. Discuti muito como Nicarágua não seria Cuba, mas seguiria o caminho do pluralismo e faria uma reforma agrária de novo tipo.
O nossso grupo, de que eu era apenas o mais jovem e que nele absorvia uma mundivisão fascinante, acreditava que a América Central em particular e a América Latina em geral sairia do ciclo de ditaduras militares, regimes autocráticos, predomínio das oligarquias que a asfixiava.
Nessa altura era Sandinista e ouvia alguns camaradas revolucionários, vários deles trotskistas, criticar o que lhes parecia o excessivo centrismo do novo poder, o que achavam ser uma cedência às liberdades burguesas com o sentido de que a Nicarágua venceria quer o sectarismo quer a tentação autoritária cubana.
Mas os anos passaram e da Frente Sandinista de Libertação Nacional não sobrou nem cultura democrática, nem espírito revolucionário, nem consciência social, nem sentido de resposta às necessidades das populações. Apenas uma caricatura de poder em nome do povo, talvez apoiada por Cuba porque a geoestrategia é o que é, mas em que Daniel Ortega é presidente e a sua mulher vice-Presidente, a legislação sobre o aborto é das mais restritivas do mundo, há grupos paramilitares que aterrorizam as populações e a oligarquia foi substituída pela clique fiel ao casal presidencial. Tudo como em qualquer ditadura.
Eu acho que ainda sou Sandinista. Mas a Nicarágua já não é e este artigo do Avamte desgostou-me porque é um mero exercício pavloviano, incapaz de ver quem é hoje Ortega e o que representa para o seu povo. Mas porque socialistas de esquerda, progressistas de várias origens, católicos empenhado na transformação social, em todo o mundo e também em Portugal, acreditámos que a Nicarágua seria um país diferente num continente onde o povo, os camponeses, os indígenas, as pessoas pobres são mártires, e não foi nada disso. Foi apenas mais uma ditadura.
E quando a cabeleireira que nestes últimos me meses me corta o cabelo em Washington, nicaraguense fugida da pobreza e da ditadura, que sabe que sou apenas um português que trabalha num sítio importante me diz o que é Ortega para a sua aldeia, para a sua família, para o seu povo, não tenho vergonha de ter sido Sandinista e ela também me diz que nem sempre Ortega foi assim. Pergunto-me, sim, como se pode prevenir a tirania. Daniel Ortega, hoje, é apenas mais um tirano, seja qual for a retórica em que embrulhe esse facto.
Peretencia a um coletivo, criado no âmbito do CIDAC, chamado GSAL (Grupo de Solidariedade com a América Latina), onde conheci algumas das melhores pessoas com que me cruzei em toda a minha vida.
Todos os anos, a 19 de julho , comemorávamos a revolução Sandinista, esse momento fundador de uma liberdade alternativa na América Central, que derrubara o ditador Somoza, criará um regime pluralista, aberto, orientado pelo povo, socialista e cristão, que dava voz à diversidade e até tinha um poeta e padre, Ernesto Cardinal, como um dos seus ícones e ministros. Li os seus poemas com amigos. Discuti muito como Nicarágua não seria Cuba, mas seguiria o caminho do pluralismo e faria uma reforma agrária de novo tipo.
O nossso grupo, de que eu era apenas o mais jovem e que nele absorvia uma mundivisão fascinante, acreditava que a América Central em particular e a América Latina em geral sairia do ciclo de ditaduras militares, regimes autocráticos, predomínio das oligarquias que a asfixiava.
Nessa altura era Sandinista e ouvia alguns camaradas revolucionários, vários deles trotskistas, criticar o que lhes parecia o excessivo centrismo do novo poder, o que achavam ser uma cedência às liberdades burguesas com o sentido de que a Nicarágua venceria quer o sectarismo quer a tentação autoritária cubana.
Mas os anos passaram e da Frente Sandinista de Libertação Nacional não sobrou nem cultura democrática, nem espírito revolucionário, nem consciência social, nem sentido de resposta às necessidades das populações. Apenas uma caricatura de poder em nome do povo, talvez apoiada por Cuba porque a geoestrategia é o que é, mas em que Daniel Ortega é presidente e a sua mulher vice-Presidente, a legislação sobre o aborto é das mais restritivas do mundo, há grupos paramilitares que aterrorizam as populações e a oligarquia foi substituída pela clique fiel ao casal presidencial. Tudo como em qualquer ditadura.
Eu acho que ainda sou Sandinista. Mas a Nicarágua já não é e este artigo do Avamte desgostou-me porque é um mero exercício pavloviano, incapaz de ver quem é hoje Ortega e o que representa para o seu povo. Mas porque socialistas de esquerda, progressistas de várias origens, católicos empenhado na transformação social, em todo o mundo e também em Portugal, acreditámos que a Nicarágua seria um país diferente num continente onde o povo, os camponeses, os indígenas, as pessoas pobres são mártires, e não foi nada disso. Foi apenas mais uma ditadura.
E quando a cabeleireira que nestes últimos me meses me corta o cabelo em Washington, nicaraguense fugida da pobreza e da ditadura, que sabe que sou apenas um português que trabalha num sítio importante me diz o que é Ortega para a sua aldeia, para a sua família, para o seu povo, não tenho vergonha de ter sido Sandinista e ela também me diz que nem sempre Ortega foi assim. Pergunto-me, sim, como se pode prevenir a tirania. Daniel Ortega, hoje, é apenas mais um tirano, seja qual for a retórica em que embrulhe esse facto.
26.7.19
Vieira da Silva, o homem que duas vezes viu a necessidade de dar prioridade ao salário mínimo nacional
Uma das grandes rupturas da revolução de abril foi sem dúvida a criação do salário mínimo nacional.
Foi criado logo em maio de 1974 para os trabalhadores da indústria e serviços, depois alargado em 1977 aos trabalhadores da agricultura, silvicultura e pecuaria e, em 1978, aos trabalhadores do serviço doméstico.
Como em muitos países, a evolução do salário mínimo em Portugal conta a história da relação de forças entre direita e esquerda. Os governos de direita tenderam a enfraquecê-lo, conter o seu valor e os de esquerda a revalorizá-lo.
Mas essa revalorização era contida, durante muito tempo, por o salário mínimo ter sido o indexante de várias despesas públicas, das prestações sociais aos subsídios aos partidos políticos. O seu aumento acarretava não apenas melhoria de bem-estar e garantia de um mínimo de dignidade para os trabalhadores mas também um aumento de despesa pública que incentivava os governos a serem tímidos na sua variação.
A história do salário mínimo em Portugal, neste século, teve um ponto decisivo de viragem, que é o momento de sublinhar, porque se deve inteiramente à chegada à pasta do trabalho e segurança social e à sua visão estratégica do problema, do homem que agora anunciou a sua saída da política activa, José António Vieira da Silva.
Em 2006 conseguiu um acordo histórico com todos os parceiros sociais para o aumento sustentado do salário mínimo nacional. Sublinhe-se que, dos poucos acordos que a CGTP alguma vez assinou, este continua a ser o único que regula especificamente uma matéria laboral (os outros foram sobre política de emprego, higiene e segurança e segurança social). Nesse acordo definiu-se um objetivo de aumento do salário mínimo nacional de 30% em cinco anos e removeu-se o espartilho que o ligava à despesa pública, passando esta a estar ligada a uma nova medida, a que se chamou indexante de apoios sociais.
Não faltaram na época os críticos de tão acentuada revalorização, nomeadamente nos setores mais ortodoxos da economia e mais conservadores da política - que aumentaria o desemprego, que não teria efeitos positivos nas desigualdades salariais, etc. Mas o caminho prosseguiu.
Depois veio a crise. É certo que, sob a influência da viragem para a austeridade que a adopção dos PEC implicava já não foi possível ao ministro e ao governo cumprir completamente o acordo e o aumento para 2011 em vez de chegar aos prometidos 500 euros, quedou-se pelos 485 euros.
Com a troika, o salário mínimo estaria necessariamente sob os holofotes das chamadas reformas estruturais, mas os negociadores (ainda a equipa de Vieira da Silva) conseguiram manter no texto uma porta semiaberta. Diz o memorando que os aumentos do salário mínimo só poderiam ocorrer se justificados pela evolução da economia e do mercado de trabalho e acordados nas revisões do programa. Certamente, com o governo que queria ir além da troika, o salário mínimo ficou congelado por todo o tempo do programa. Note-se, em abono da verdade, que em outubro de 2014, após 4 anos de congelamento, o governo PSD-CDS aprovou ainda um aumento do salário mínimo.
Mas foi Vieira da Silva quem, regressando ao governo, retomou a estratégia de revalorização do salário mínimo, levou o tema à concertação social e, de novo, de lá saiu com um acordo com os parceiros sociais, embora desta vez sem a CGTP, para a sua revalorização, agora para atingir os 600 euros em 2019 o que desta vez, pôde cumprir. É certo que nesta negociação se embrulhou numa compensação aos patrões em descontos para a segurança social que teria sido contraproducente. Mas aqui a geringonça revelou o seu potencial de contrpeso a cedências excessivas à direita, anulando no parlamento a possibilidade de concretização dessa "indemnização"desnecessária na prática, embora provavelmente inevitável na negociação.
Nada, contudo, pode retirar a Vieira da Silva o mérito de ter sido duas vezes o obreiro de uma revalorização essencial do salário mínimo nacional, uma peça basilar das políticas da defesa da dignidade dos trabalhadores.
Quem acompanhe estas questões de longe achará que o salário mínimo é uma pequena medida na política de emprego, mas engana-se. Pelos últimos dados disponíveis é ele que define o salário que recebe mais de um quinto de todos os trabalhadores. É por isso, hoje, a mais importante garantia de proteção contra o fenómeno dos trabalhadores pobres.
Na minha visão, a persistência de Vieira da Silva na valorização do salário mínimo nacional fica como uma das marcas sociais mais profundas do governo que agora termina e ofereço, em defesa desta tese, este gráfico à vossa análise. Nele podem ver os efeitos das políticas e como os governos e os políticos não são todos iguais. Ainda não há dados para 2018 e 2019, mas em 2017 o valor do salário mínimo em Portugal já ultrapassou pela primeira vez em décadas 60% do rendimento mediano. Acreditem que não é efeito pouco positivo nem sinal irrelevante de empenho nas políticas sociais.
Foi criado logo em maio de 1974 para os trabalhadores da indústria e serviços, depois alargado em 1977 aos trabalhadores da agricultura, silvicultura e pecuaria e, em 1978, aos trabalhadores do serviço doméstico.
Como em muitos países, a evolução do salário mínimo em Portugal conta a história da relação de forças entre direita e esquerda. Os governos de direita tenderam a enfraquecê-lo, conter o seu valor e os de esquerda a revalorizá-lo.
Mas essa revalorização era contida, durante muito tempo, por o salário mínimo ter sido o indexante de várias despesas públicas, das prestações sociais aos subsídios aos partidos políticos. O seu aumento acarretava não apenas melhoria de bem-estar e garantia de um mínimo de dignidade para os trabalhadores mas também um aumento de despesa pública que incentivava os governos a serem tímidos na sua variação.
A história do salário mínimo em Portugal, neste século, teve um ponto decisivo de viragem, que é o momento de sublinhar, porque se deve inteiramente à chegada à pasta do trabalho e segurança social e à sua visão estratégica do problema, do homem que agora anunciou a sua saída da política activa, José António Vieira da Silva.
Em 2006 conseguiu um acordo histórico com todos os parceiros sociais para o aumento sustentado do salário mínimo nacional. Sublinhe-se que, dos poucos acordos que a CGTP alguma vez assinou, este continua a ser o único que regula especificamente uma matéria laboral (os outros foram sobre política de emprego, higiene e segurança e segurança social). Nesse acordo definiu-se um objetivo de aumento do salário mínimo nacional de 30% em cinco anos e removeu-se o espartilho que o ligava à despesa pública, passando esta a estar ligada a uma nova medida, a que se chamou indexante de apoios sociais.
Não faltaram na época os críticos de tão acentuada revalorização, nomeadamente nos setores mais ortodoxos da economia e mais conservadores da política - que aumentaria o desemprego, que não teria efeitos positivos nas desigualdades salariais, etc. Mas o caminho prosseguiu.
Depois veio a crise. É certo que, sob a influência da viragem para a austeridade que a adopção dos PEC implicava já não foi possível ao ministro e ao governo cumprir completamente o acordo e o aumento para 2011 em vez de chegar aos prometidos 500 euros, quedou-se pelos 485 euros.
Com a troika, o salário mínimo estaria necessariamente sob os holofotes das chamadas reformas estruturais, mas os negociadores (ainda a equipa de Vieira da Silva) conseguiram manter no texto uma porta semiaberta. Diz o memorando que os aumentos do salário mínimo só poderiam ocorrer se justificados pela evolução da economia e do mercado de trabalho e acordados nas revisões do programa. Certamente, com o governo que queria ir além da troika, o salário mínimo ficou congelado por todo o tempo do programa. Note-se, em abono da verdade, que em outubro de 2014, após 4 anos de congelamento, o governo PSD-CDS aprovou ainda um aumento do salário mínimo.
Mas foi Vieira da Silva quem, regressando ao governo, retomou a estratégia de revalorização do salário mínimo, levou o tema à concertação social e, de novo, de lá saiu com um acordo com os parceiros sociais, embora desta vez sem a CGTP, para a sua revalorização, agora para atingir os 600 euros em 2019 o que desta vez, pôde cumprir. É certo que nesta negociação se embrulhou numa compensação aos patrões em descontos para a segurança social que teria sido contraproducente. Mas aqui a geringonça revelou o seu potencial de contrpeso a cedências excessivas à direita, anulando no parlamento a possibilidade de concretização dessa "indemnização"desnecessária na prática, embora provavelmente inevitável na negociação.
Nada, contudo, pode retirar a Vieira da Silva o mérito de ter sido duas vezes o obreiro de uma revalorização essencial do salário mínimo nacional, uma peça basilar das políticas da defesa da dignidade dos trabalhadores.
Quem acompanhe estas questões de longe achará que o salário mínimo é uma pequena medida na política de emprego, mas engana-se. Pelos últimos dados disponíveis é ele que define o salário que recebe mais de um quinto de todos os trabalhadores. É por isso, hoje, a mais importante garantia de proteção contra o fenómeno dos trabalhadores pobres.
Na minha visão, a persistência de Vieira da Silva na valorização do salário mínimo nacional fica como uma das marcas sociais mais profundas do governo que agora termina e ofereço, em defesa desta tese, este gráfico à vossa análise. Nele podem ver os efeitos das políticas e como os governos e os políticos não são todos iguais. Ainda não há dados para 2018 e 2019, mas em 2017 o valor do salário mínimo em Portugal já ultrapassou pela primeira vez em décadas 60% do rendimento mediano. Acreditem que não é efeito pouco positivo nem sinal irrelevante de empenho nas políticas sociais.
25.7.19
Antes de atravessar certas estradas, pare, escute e olhe
O fascismo deixou-nos a memória dos tribunais plenários, destinados a julgar um tipo especifico de crimes, então os políticos. Ninguém acreditava na imparcialidade desses tribunais.
Os pais fundadores da nossa democracia, preocupados com o que viram, ouviram e viveram, quiseram deixar uma marca clara na constituição sobre este tipo de tribunais destinados a julgar um único tipo de crime, e foi simples - nunca mais.
É certo que temos tribunais de competência especializada, no trabalho, na família, por exemplo, mas são tribunais sobre uma área social definida e não sobre um crime específico.
Mas quando leio que há quem pondere tribunais especiais para um tipo único de crime - por mais hediondo que seja - temo que se esteja a enfraquecer a exigência que é necessária a que um sistema de garantia de direitos civis permaneça completamente fiel ao espírito fundador das democracias desde o século XVIII.
Seja quando o PAN propõe tribunais específicos para crimes de corrupção ou quando o PS pondera tribunais específicos para crimes de violência doméstica, eu não consigo sair do quadro das atuais garantias constitucionais - tribunais para domínios especializados de competência sim, tribunais para crimes específicos não. Porque na era do pânico moral, o risco de enfraquecer a justiça e entregar o seu exercício a agentes incapazes de garantir o principal dever de se manterem capazes de julgamentos imparciais, com respeito profundo pelas vítimas, mas também pelos direitos dos arguidos, é uma fronteira que se revela fácil de transpor, com evidentes riscos de produzir injustiça. E a injustiça é uma ameaça basilar à democracia.
Os pais fundadores da nossa democracia, preocupados com o que viram, ouviram e viveram, quiseram deixar uma marca clara na constituição sobre este tipo de tribunais destinados a julgar um único tipo de crime, e foi simples - nunca mais.
É certo que temos tribunais de competência especializada, no trabalho, na família, por exemplo, mas são tribunais sobre uma área social definida e não sobre um crime específico.
Mas quando leio que há quem pondere tribunais especiais para um tipo único de crime - por mais hediondo que seja - temo que se esteja a enfraquecer a exigência que é necessária a que um sistema de garantia de direitos civis permaneça completamente fiel ao espírito fundador das democracias desde o século XVIII.
Seja quando o PAN propõe tribunais específicos para crimes de corrupção ou quando o PS pondera tribunais específicos para crimes de violência doméstica, eu não consigo sair do quadro das atuais garantias constitucionais - tribunais para domínios especializados de competência sim, tribunais para crimes específicos não. Porque na era do pânico moral, o risco de enfraquecer a justiça e entregar o seu exercício a agentes incapazes de garantir o principal dever de se manterem capazes de julgamentos imparciais, com respeito profundo pelas vítimas, mas também pelos direitos dos arguidos, é uma fronteira que se revela fácil de transpor, com evidentes riscos de produzir injustiça. E a injustiça é uma ameaça basilar à democracia.
Adenda. Em comentário no Facebook, Isabel Moreira escreveu “ penso que no calor do momento António Costa disse isto : como jurista entendo que não é inconstitucional. E bem, digo eu. Depois acrescentou sem necessidade: mas se fosse necessário rever a constituição, que motivo mais forte que não a violência doméstica? Entendes ? A frase saiu ali assim , mas ficou claro que não há inconstitucionalidade”
Se assim for, posso estar a ler, em relação ao PS, algo que foi apenas dito “no calor do momento” e, o que seria excelente, o que escrevi não se aplica a nada que passe pelo que este partido está a ponderar.
23.7.19
Faleceu Li Peng
Faleceu Li Peng, o homem que deu a ordem que conduziu ao massacre de Tiananmen. Na nossa espontânea forma individualista de olhar para a história, morreu o carniceiro da Praça da Paz Celestial.
Mas aproveitemos a ocasião para refletir um pouco sobre o que teria acontecido se o setor que Li Peng representou tivesse sido o derrotado e não o vitorioso. Naquele momento, o movimento dos estudantes só atingiu a expressão que teve e só durou o tempo que durou porque o Partido Comunista tinha a sua cúpula dividida sobre o rumo a seguir. Se não estava em causa o caminho de liberalização económica, estava em discussão a possibilidade de uma sociedade mais aberta, pluralista, respeitadora de direitos individuais e da liberdade de expressão de opiniões diferentes.
Provavelmente, se o espírito de Tiananmen tivesse triunfado e os seus aliados nas cúpulas do partido saído vencedores, pouco tinha mudado na abertura da economia ao mundo, na construção de uma economia com progressivos mecanismos de mercado, ainda que ferreamente controlados pelo Estado em alguns domínios muito relevantes.
O que teria sido diferente seria no domínio das liberdades individuais. O Partido Comunista chinês teve nas mãos a oportunidade de tentar construir um modelo único de sociedade, que nenhum de nós sabe onde teria acabado. Com o caminho que escolheu, o colapso dos socialismos reais acabou por saldar-se por duas experiências, ambas hoje adversárias da democracia liberal. Na Rússia, um regime nacionalista, semipluralista e autoritário, com uma economia dominada por oligarcas, dependentes do círculo do líder. Na China, uma ditadura política que regula a sua economia progressivamente mais por mecanismos de mercado.
Se a China de hoje está integrada na globalização ao ponto de podermos ve-la a defender o sistema multilateral de comércio e as suas regras contra aqueles regimes que foram campeões da sua criação, em Tiananmen enterrou por muito tempo a possibilidade de um caminho para uma sociedade pluralista, respeitadora dos direitos humanos e aberta.
Por isso, a China pode ser um grande parceiro económico, um regime respeitado, mesmo um parceiro estratégico para resolver os problemas do mundo, mas um democrata não precisa de ser muito radical para entender que Tiananmen é um momento fundador do caminho da China após a queda da velha guerra entre dois blocos e que, nesse cruzamento da história, a China escolheu a ditadura.
Mas aproveitemos a ocasião para refletir um pouco sobre o que teria acontecido se o setor que Li Peng representou tivesse sido o derrotado e não o vitorioso. Naquele momento, o movimento dos estudantes só atingiu a expressão que teve e só durou o tempo que durou porque o Partido Comunista tinha a sua cúpula dividida sobre o rumo a seguir. Se não estava em causa o caminho de liberalização económica, estava em discussão a possibilidade de uma sociedade mais aberta, pluralista, respeitadora de direitos individuais e da liberdade de expressão de opiniões diferentes.
Provavelmente, se o espírito de Tiananmen tivesse triunfado e os seus aliados nas cúpulas do partido saído vencedores, pouco tinha mudado na abertura da economia ao mundo, na construção de uma economia com progressivos mecanismos de mercado, ainda que ferreamente controlados pelo Estado em alguns domínios muito relevantes.
O que teria sido diferente seria no domínio das liberdades individuais. O Partido Comunista chinês teve nas mãos a oportunidade de tentar construir um modelo único de sociedade, que nenhum de nós sabe onde teria acabado. Com o caminho que escolheu, o colapso dos socialismos reais acabou por saldar-se por duas experiências, ambas hoje adversárias da democracia liberal. Na Rússia, um regime nacionalista, semipluralista e autoritário, com uma economia dominada por oligarcas, dependentes do círculo do líder. Na China, uma ditadura política que regula a sua economia progressivamente mais por mecanismos de mercado.
Se a China de hoje está integrada na globalização ao ponto de podermos ve-la a defender o sistema multilateral de comércio e as suas regras contra aqueles regimes que foram campeões da sua criação, em Tiananmen enterrou por muito tempo a possibilidade de um caminho para uma sociedade pluralista, respeitadora dos direitos humanos e aberta.
Por isso, a China pode ser um grande parceiro económico, um regime respeitado, mesmo um parceiro estratégico para resolver os problemas do mundo, mas um democrata não precisa de ser muito radical para entender que Tiananmen é um momento fundador do caminho da China após a queda da velha guerra entre dois blocos e que, nesse cruzamento da história, a China escolheu a ditadura.
22.7.19
Antonina, não vamos repetir o erro que fizemos com o MIguel
Dispersos, pelo país ou pelo mundo, com as redes sociais a criarem-nos uma ilusão de proximidade, vemos as vidas dos nossos amigos, falo dos nossos amigos físicos, cada vez mais a partir apenas do espaço virtual. E, em pequenas mensagens, vamos trocando promessas de voltar à vida “antiga”, de marcar um café para conversar, um almoço para por projetos em dia, uma tarde para espraiarmos a má -língua sobre algum de nós, quantas vezes os ausentes.
Podemos ter seguido as suas carreiras a distância, mas, também pela janela aberta pelo espaço virtual, mantivemos sempre a sua presença na nossa vida.
Foi isto que hoje me aconteceu com Miguel Ferraz, depois de uns anos intensos a estudar uma Sociologia a que ele não se dedicou, continuei a ve-lo por aí, na televisão, na produção, na escrita. Falávamos, mas sobretudo prometíamos um ao outro que tínhamos que falar. E prometemos. E prometemos. E este fim-de-semana não olhei o suficiente para a net para ver que já não falaríamos, nem sequer para ver que podia ter ido à Sociedade Portuguesa de Autores dizer-lhe adeus. Apenas uma amiga comum, também por aqui, me enviou primeiro o alerta, depois o alarme. Já não almoçamos mais com ele. E prometemos um ao outro almoçar. E vamos almoçar Antonina, assim que eu regressar. Não podemos repetir o erro que fizemos com o Miguel.
Podemos ter seguido as suas carreiras a distância, mas, também pela janela aberta pelo espaço virtual, mantivemos sempre a sua presença na nossa vida.
Foi isto que hoje me aconteceu com Miguel Ferraz, depois de uns anos intensos a estudar uma Sociologia a que ele não se dedicou, continuei a ve-lo por aí, na televisão, na produção, na escrita. Falávamos, mas sobretudo prometíamos um ao outro que tínhamos que falar. E prometemos. E prometemos. E este fim-de-semana não olhei o suficiente para a net para ver que já não falaríamos, nem sequer para ver que podia ter ido à Sociedade Portuguesa de Autores dizer-lhe adeus. Apenas uma amiga comum, também por aqui, me enviou primeiro o alerta, depois o alarme. Já não almoçamos mais com ele. E prometemos um ao outro almoçar. E vamos almoçar Antonina, assim que eu regressar. Não podemos repetir o erro que fizemos com o Miguel.
21.7.19
O touro e o toureiro na sinaletica do campo pequeno
Quem me leia sabe que não me encontro de nenhum dos lados militantes na questão das touradas.
Vejo nas várias atividades taurinas uma relação entre o homem e o animal que expressa valores que, como todos os outros, podem ter as suas diversas fases de crescimento, apogeu, declínio e extinção. E não estão na sua fase mais pujante. Traços culturais, como civilizações, morrem.
Mas não vejo na cultura taurina a encarnação da barbaridade que um setor da opinião portuguesa, legitimamente, lhe atribui.
Partindo desta posição não percebo a iniciativa política de supressão simbólica das touradas, remetendo-as para um semi-interdito ao suprimi-las da sinaletica lisboeta. Se espero que nas proximidades de um teatro a sinaletica me ajude a encontrá-lo; se espero que essa mesma sinaletica me indique se estou perto de um WC, acho absolutamente incompreensível que em Lisboa, pelas fotografias que vejo por aí, se tenha suprimido na proximidade de uma praça de touros qualquer referência ao espetáculo que lá se desenrola e de que é ex-libris.
Eu tendo a ser anti-proibicionista. Só deve remeter-se para o domínio do interdito o que valores sociais muito seguros e consensuais ou tão esnagadoramente predominantes considerem inaceitável e não o que no pluralismo de uma sociedade aberta livremente agrada a uns e gera repulsa a outros.
Porque tornam difícil artificialmente saber onde se desenrola um espetáculo, legal, que paga impostos e tem clientes? É nestas coisas que acho que se joga também a abertura à diversidade e o cosmopolitismo nos exige prudência, para que não se resvale para uma censura, ainda que soft, não totalmente coerente com a cidade aberta e liberal em que gostaria de viver.
20.7.19
sobre uma legislatura do diabo
Todos os partidos aquecem os motores para a campanha eleitoral que se aproxima. Se as sondagens, que em eleições legislativas costumam ser fiáveis, não forem contrariadas pelos resultados eleitorais, não vai estar em causa agora quem vence as eleições nem quem será o próximo Primeiro-Ministro.
Mas vai decidir-se ainda com que relação de forças se formará o próximo governo.
Se o PS chegasse à maioria absoluta, o que neste momento se configura como improvável mas não impossível, o centro de gravidade da próxima legislatura transferir-se-ia de novo para a relação entre o Governo e o Presidente, tendo este último o papel de moderador e àrbitro, como lhe gostava de chamar Mário Soares. De algum modo seria uma vitória clara da dupla Costa-Marcelo sobre a direita e a esquerda.
Se o PS chegasse à maioria absoluta, o que neste momento se configura como improvável mas não impossível, o centro de gravidade da próxima legislatura transferir-se-ia de novo para a relação entre o Governo e o Presidente, tendo este último o papel de moderador e àrbitro, como lhe gostava de chamar Mário Soares. De algum modo seria uma vitória clara da dupla Costa-Marcelo sobre a direita e a esquerda.
Se a geringonça se repetisse nos moldes atuais, o que parece ser o que resultaria de uma certa inércia eleitoral e da sobrevivência do PCP com resultados eleitorais acima do que as sondagens lhe atribuem, o centro de gravidade continuaria nos acordos parlamentares, o Parlamento ganharia em duas eleições consecutivas uma preponderância política rara no nosso sistema e, quem sabe, estaríamos perante uma evolução duradoura que pode configurar novas soluções políticas, à esquerda como à direita, em que o Parlamento se não limita a chancelar um governo sob a força do rolo compressor de um grupo de deputados maioritário, que obedece a orientações de um partido ou coligação de governo com direções partidárias centralizadas.
Se, como começa a parecer que o BE e alguns setores do PS desejariam, se evoluísse agora para uma coligação pós-eleitoral com participação no governo de bloquistas, para além de um profunda derrota estratégica do PCP que poderia precipitar o seu declínio, a inorganicidade de alguns protestos sociais e o regresso de uma ativa oposição de esquerda nas ruas a um governo de esquerda, voltaríamos a ter Costa e Marcelo no centro de gravidade do sistema, mas bastante condicionados pela agenda do BE e pela possível luta fratricida à sua esquerda. E não se deve subvalorizar o papel que a influência do PCP e a contenção da CGTP tiveram na governabilidade neste legislatura.
Em qualquer destes cenários internos, a evolução do ciclo económico determina que o próximo governo enfrentará uma desaceleração económica mundial, com reflexo negativo nos nossos parceiros comerciais e, portanto, nas nossas exportações e no nosso PIB, mesmo que sejamos otimistas face a Trump, à evolução das relações EUA-China ou aos efeitos das tensões com o Irão e seus reflexos no golfo e no preço do petróleo.
A próxima legislatura será, ainda, aquela em que se torna difícil conter a evolução das expetativas, após mais de uma década sem progressão significativa do nível de vida da população, com reduzido investimento público a tornar obsoletos sistemas de apoio ao desempenho de várias funções do Estado. Todos quererão o seu quinhão na recuperação prometida que começou nesta legislatura. Muitos quererão agora melhor desempenho dos serviços públicos e a situação e ansiedades dos portugueses em volta da saúde estão aí como sinal avançado dessa tendência.
O PS, pelo que se sabe e pelo que provavelmente se verá hoje na sua convenção nacional preparou para este novo quadro um programa típico de segundo mandato, responsável, sólido, com melhorias incrementais, uma agenda de desafios, sem grandes ousadias, mas também sem aventuras que pudessem revelar-se perigosas ou de concretização difícil.
Mas a execução da estratégia que vingou, para muitos inesperadamente, nesta legislatura, criando um governo de condomínio Costa-Centeno viabilizado por uma enorme contenção dos aprtidos de esquerda, com o primeiro a conduzir magistralmente a estratégia e o segundo com os pés firmes nos travões de quaisquer aventuras, pode contar ainda com dificuldades acrescidas, se tiver sucesso a candidatura de Centeno ao FMI de que a imprensa internacional fala e que muito orgulharia Portugal.
Finalmente, convém ter em conta que os portugueses são tradicionalmente severos com os governos em segunda legislatura. Tanto que desde o 25 de abril apenas uma vez o mesmo primeiro-ministro e o mesmo partido ganhou três eleições legislativas consecutivas. Foi assim com Cavaco Silva, em 1985, 1987 e 1991 mas, mesmo esse teve uma primeira legislatura curta, devido a uma moção de censura e não sobreviveu a uma desaceleração económica séria no seu último mandato.
Por tudo isto, António Costa, hoje o grande ativo político com que o PS prepara a sua vitória eleitoral e esmaga o cada vez mais fraco segundo maior partido do país, terá que fazer história para chegar forte ao fim desta verdadeira legislatura do diabo. Nada que, se contar com uma colaboração estratégica de Marcelo lhe seja impossível, mesmo com as adversidades previsíveis, sobretudo se tiver que enfrentar essencialmente desafios que requeiram dele domínio da tática, de análise da relação de forças, arbitragem de pressões contraditórias e sentido de oportunidade nas decisões que possa atempadamente e racionalmente preparar. Já demonstrou ser um político com a visão típica de general ou de grande mestre de xadrez.
Diferente seria se o diabo juntasse a todos estes ingredientes alguma situação que forçasse a necessidade de competências emocionais, reação em cimda hora em contexto de tensão afetiva, de empatia com pessoas e grupos vulneráveis em situações de adversidade. Para esse lado da construção de um novo sucesso político, que faria dele o primeiro político português e do PS sob sua liderança o primeiro partido a poder governar não apenas os oito anos que agora está a lançar, mas doze. Costa terá, no desenho deste ciclo político, que inovar algo.
E resta uma pergunta que teremos que fazer a nós próprios. Com o caminho que seguimos chegaremos ao fim desse ciclo com uma sociedade mais próspera, produtiva, menos desigual e mais ambientalmente sustentável? Para que a estratégia que o PS propõe ao país é necessário acrescentar ainda muita ambição de mudança ao inequívoco triunfo já conseguido sobre a conjuntura.
E resta uma pergunta que teremos que fazer a nós próprios. Com o caminho que seguimos chegaremos ao fim desse ciclo com uma sociedade mais próspera, produtiva, menos desigual e mais ambientalmente sustentável? Para que a estratégia que o PS propõe ao país é necessário acrescentar ainda muita ambição de mudança ao inequívoco triunfo já conseguido sobre a conjuntura.
16.7.19
ceci n’est plus une geringonça? A gente de Espanha não apanha más influências.
Há algum tempo, decorria uma das muitas crises de governo na Bélgica e uma colega socióloga belga iniciou uma comunicação num seminário do ISCTE com a fotografia oficial do seu governo em gestão há muitos meses, já não me lembro quantos, e a legenda “ceci n’est pas um gouvernement”. Já vi a frase de Magritte em mais umas quantas situações para definir casos de contradição entre o que se é e o que se diz ser. Recentemente numa conferência num Banco Mundial um especialista sobre os problemas de segurança no Sahel começou a sua comunicação com exatamente a mesma legenda, desta vez sobre uma fotografia das forças de paz das Nações Unidas e agora com a legenda Ceci n’est pas une armée.
A notícia da ruptura das negociações entre o PSOE e o Podemos surpreende pelo que significa de que as esquerdas em Espanha são incapazes de se entender. Se Pedro Sanchez não aceita que o Podemos faça um referendo interno a um acordo parece, visto de longe, um absurdo. O SPD faz sempre algo parecido antes de se coligar com a CDU na Alemanha, quando não faz também um congresso extraordinário. E parece-me democrático e normal. Até Mário Soares, entre nós, fez em 1983 um referendo interno ao Bloco Central. Só quando a esquerda democrática europeia entrou em alguns países na sua fase de lideranças excessivamente unipessoais é que a coisa começou a parecer errada.
Se Sanchez está apenas a tentar ir para eleições outra vez e melhorar o seu resultado, talvez libertando-se dos incómodos companheiros do Unidos Podemos, Espanha pode estar a viver algo como um ceci n’est pas une negociation.
Já correu mal à esquerda uma vez e não ajudava nada ao que está a viver a Europa que Espanha não fosse governável. Como não ajudava nada à esquerda europeia que a Espanha não fosse governável à esquerda. Para já, talvez o PS pudesse ajudar o PSOE a refletir sobre a paciência que é necessária para atingir compromissos ou o BE e o PCP pudessem ajudar o Podemos sobre a arte de entender os socialistas.
Mas não sei se nada do que se passa em Portugal é transferível para Espanha. Nem por aqui temos a questão das nacionalidades que a Espanha partilha com a Bélgica, nem tivemos ainda os parceiros de governo do PS a assumir que querem co-governar o país. Talvez continue assim em Outubro - é o que toda a gente antecipa - e tudo fique na mesma. Mas se algo mudasse, nomeadamente no cenário em que ao PS bastasse entender-se com uma força de esquerda para formar governo, o meu lado pessimista não excluiria as dificuldades de alguém descobrir na 25a hora que ceci n’est plus une geringonça. Mas não deve acontecer, que de Espanha a gente não apanha bons ventos, bom casamentos nem más influências.
A notícia da ruptura das negociações entre o PSOE e o Podemos surpreende pelo que significa de que as esquerdas em Espanha são incapazes de se entender. Se Pedro Sanchez não aceita que o Podemos faça um referendo interno a um acordo parece, visto de longe, um absurdo. O SPD faz sempre algo parecido antes de se coligar com a CDU na Alemanha, quando não faz também um congresso extraordinário. E parece-me democrático e normal. Até Mário Soares, entre nós, fez em 1983 um referendo interno ao Bloco Central. Só quando a esquerda democrática europeia entrou em alguns países na sua fase de lideranças excessivamente unipessoais é que a coisa começou a parecer errada.
Se Sanchez está apenas a tentar ir para eleições outra vez e melhorar o seu resultado, talvez libertando-se dos incómodos companheiros do Unidos Podemos, Espanha pode estar a viver algo como um ceci n’est pas une negociation.
Já correu mal à esquerda uma vez e não ajudava nada ao que está a viver a Europa que Espanha não fosse governável. Como não ajudava nada à esquerda europeia que a Espanha não fosse governável à esquerda. Para já, talvez o PS pudesse ajudar o PSOE a refletir sobre a paciência que é necessária para atingir compromissos ou o BE e o PCP pudessem ajudar o Podemos sobre a arte de entender os socialistas.
Mas não sei se nada do que se passa em Portugal é transferível para Espanha. Nem por aqui temos a questão das nacionalidades que a Espanha partilha com a Bélgica, nem tivemos ainda os parceiros de governo do PS a assumir que querem co-governar o país. Talvez continue assim em Outubro - é o que toda a gente antecipa - e tudo fique na mesma. Mas se algo mudasse, nomeadamente no cenário em que ao PS bastasse entender-se com uma força de esquerda para formar governo, o meu lado pessimista não excluiria as dificuldades de alguém descobrir na 25a hora que ceci n’est plus une geringonça. Mas não deve acontecer, que de Espanha a gente não apanha bons ventos, bom casamentos nem más influências.
15.7.19
A promiscuidade que nunca existiu
Em Portugal tornou-se famosa a frase “você sabe que eu sei que...”. Por aqui não levou a lado nenhum, mas quem acompanhe o trabalho de Glenn Greenwald desde investigações anteriores sabe que ele costuma saber o que está a dizer. E o que está a mostrar é que há pecado original na abordagem da justiça brasileira a Lula. Um pecado original de promiscuidade entre acusação e juiz, que no Brasil atinge padrões chocantes que nunca atingiria em Portugal, quando o juiz de instrução é também o juiz de julgamento, mas que está longe de ser um exclusivo do nosso país-irmão.
Na minha experiência com a justiça criminal portuguesa nunca percebi porque o juiz imparcial entrava na sala pela mesma porta da acusação, porque tinham gabinetes em zonas conjuntas ou porque claramente se tratavam como iguais e acima dos advogados dos arguidos.
A igualdade de armas entre acusação e defesa é um elemento fundamental da justiça em tribunal. Com o que já ouvimos do caso Lula no Brasil e neste caso é uma anedota. Nunca, ninguém investigou a intimidade entre juizes e ministério público em Portugal. Portanto, entre nós, tal como o fascismo, a promiscuidade entre magistrados judiciais e magistrados do ministério público nunca existiu.
14.7.19
Elogio de Bruno
Leio que Bruno Lage foi muito duro com os hooligans no futebol. A firmeza de atitude face ao comportamento das claques é um dos pontos que separam no futebol português quem tem coragem e visão de futuro de quem não tem.
Bruno Lage podia ter assobiado para o lado, mas não o fez. Deu mais um sinal de que é um grande protagonista de uma possível renovação, tão necessária, no futebol português.
13.7.19
A boa defesa da polícia não é complacente com os abusos de poder
Acabo de ver, do outro lado do Atlântico, via RTP Play (obrigado serviço público), uma reportagem no noticiário da RTP2 sobre um protesto formalmente inorgânico de polícias e de ouvir pequenos excertos dos discursos institucionais numa cerimónia. Fico perturbado.
Se não é a polícia que cria os guetos de pobreza e concentrações de problemas sociais que lhe tornam em alguns contextos difícil ser ao mesmo tempo eficaz e justa, não é menos verdade que quando se deixa contaminar pelo ódio ao pobre, seja sob a forma de racismo, seja sob a forma de qualquer outra das ideologias de “naturalização” da suspensão da visão do outro (para o caso, das “pessoas dos bairros”) como cidadão com direito a um tratamento digno, é ela que está a abandonar os seus deveres perante a sociedade.
Os polícias que transigirem com más práticas policiais de racismo, de violência sem fundamento, de abuso de poder, é contra si próprios enquanto cidadãos de uma democracia que se viram, a menos que não sejam democratas e nesse caso, francamente, é um perigo para nós todos que tenham lugar na polícia. E, não sejamos ingénuos, porque é importante garantir a cultura democrática das polícias não se pode esperar que ela seja um produto espontâneo, nascido das predisposições dos próprios. Tem que ser produzida, pela formação, pelo apoio, mas também pelo controlo e disciplina interna e pela condenação sem temor dos que dela se afastam.
Sim, os polícias devem ser protegidos porque agem em contextos em que muitos de nós não quereríamos e talvez não tivéssemos a força psíquica nem a coragem física para estar. Mas também por isso a boa defesa da polícia, em particular pelos polícias, não é ser complacente com erros ou crimes que esta pratique, ou confundir espírito de corpo com qualquer abuso de poder.
Se não é a polícia que cria os guetos de pobreza e concentrações de problemas sociais que lhe tornam em alguns contextos difícil ser ao mesmo tempo eficaz e justa, não é menos verdade que quando se deixa contaminar pelo ódio ao pobre, seja sob a forma de racismo, seja sob a forma de qualquer outra das ideologias de “naturalização” da suspensão da visão do outro (para o caso, das “pessoas dos bairros”) como cidadão com direito a um tratamento digno, é ela que está a abandonar os seus deveres perante a sociedade.
Os polícias que transigirem com más práticas policiais de racismo, de violência sem fundamento, de abuso de poder, é contra si próprios enquanto cidadãos de uma democracia que se viram, a menos que não sejam democratas e nesse caso, francamente, é um perigo para nós todos que tenham lugar na polícia. E, não sejamos ingénuos, porque é importante garantir a cultura democrática das polícias não se pode esperar que ela seja um produto espontâneo, nascido das predisposições dos próprios. Tem que ser produzida, pela formação, pelo apoio, mas também pelo controlo e disciplina interna e pela condenação sem temor dos que dela se afastam.
Sim, os polícias devem ser protegidos porque agem em contextos em que muitos de nós não quereríamos e talvez não tivéssemos a força psíquica nem a coragem física para estar. Mas também por isso a boa defesa da polícia, em particular pelos polícias, não é ser complacente com erros ou crimes que esta pratique, ou confundir espírito de corpo com qualquer abuso de poder.
12.7.19
Ação humanitária - uma nova oportunidade no ISCTE-IUL
Os desastres naturais, as crises económicas e sociais, as guerras e os conflitos, as grandes epidemias, geram no mundo a necessidade crescente de ação humanitária. Cada vez mais tal envolve operações duradouras, complexas, em ambientes desafiantes.
Profissionais e voluntários envolvidos necessitam, para além do profundo saber das suas àreas disciplinares, de conhecimento e formação sobre o quadro cocneptual da ação humanitária e os saberes específicos que convoca.
O ISCTE vai organizar já a partir do próximo ano letivo uma pós-graduação neste campo e estou orgulhoso de que me tenha convidado a colaborar na docência de um módulo de política internacional e geopolítica.
Espero encontrar por lá alguns dos que qui me lêem. Para quem tiver interesse, aqui fica o link para a apresentação do curso.
10.7.19
Cairá agora a última norma legal discriminatória das mulheres em Portugal?
Portugal andou muito na eliminação da discriminação legal contra as mulheres. Mas num canto do armário legislativo sobreviveu uma norma discriminatória que não lhes dá os mesmos direitos no recasamento que aos homens. Essa norma, velhinha, permite aos homens recasarem-se 180 dias após um divórcio ou uma viuvez e às mulheres apenas 300 dias depois.
Não somos os únicos no mundo a discriminar legalmente as mulheres no recasamento. Mas, para além de termos companhias indesejáveis, como a Arábia Saudita ou o Irão, pertencemos a uma minoria nos países com economias avançadas. Na Europa, só a Itália está connosco. No resto da OCDE só se junta o Chile, Israel, o Japão e a Turquia.
Um recente relatório do Banco Mundial dá conta desta e de muitas outras discriminações das mulheres no mundo e aponta a dsicriminação legal das mulheres no recasamento como a última discriminação legal de género em Portugal.
A mim que não sou jurista, parece-me defensável a leitura de que a norma que se pretende rever está completamente fora do espírito da, se não a violar expressamente, Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres, que Portugal ratificou em 1980, a qual dá a mulheres e homens o mesmo direito de contraír casamento e os mesmos direitos e as mesmas responsabilidades no casamento e aquando da sua dissolução (arto 16o, n1 alíneas a) e c)). Mesmos direitos é coisa que manifestamente esta diferença de prazos não estipula.
Segundo esta notícia do DN, a norma anacrónica pode caír agora, se o PSD se juntar ao PS, BE e PAN. Sem surpresa, o CDS está contra. Mas que se poderia esperar de diferente de um partido tomado pela ideologia de género que chama ideologia de género à defesa da igualdade? Surpreende mais a posição do PCP, que na balança da sua decisão dá mais peso aos efeitos colaterais da igualdade, como as alterações que pode implicar na presunção de paternidade, do que à defesa do valor fundamental. Mas a prudência do PCP nessas matérias, a que com mais propriedade se poderia chamar o conservadorismo latente, também não é uma surpresa total.
Haverá quem diga, com o PCP, que não há um clamor nas ruas por este aperfeiçoamento na nossa legislação sobre igualdade de género. É verdade, tal como foi verdade a propósito de muitos outros aperfeiçoamentos nos direitos humanos entre nós. Há coisas que deve bastar a consciência ditar-nos para serem procuradas. A igualdade de género é uma delas.