Em Portugal os primeiros casos conhecidos de Covid19 vieram inadvertidamente da mobilidade internacional, em particular por motivos de lazer, tendo-se identificado as férias na neve e por motivos profissionais, com a deslocação a feiras. Depois, como sabemos, criou-se a ilusão de que o vírus era socialmente cego e interclassista, propondo soluções que parecem universais mas não o são, como o confinamento e o teletrabalho. Alguns, muitos de nós, puderam ficar em casa, adaptar as suas vidas, estar até mais perto dos filhos, sofremos por não nos podermos visitar, mas compreendemos que havia um bem maior.
Entretanto, muitos outros tiveram que continuar a sair de casa todos os dias, apanhar transportes coletivos e alguns, muitos mais do que quem vê o mundo da sua bolha julga, que o fazer em bairros onde a ausência de contacto é impossível, em habitações onde as condições são precárias. Na altura foram até elogiados porque nos ajudaram, nos encheram as prateleiras dos supermercados, nos mantiveram as ruas limpas, as obras em construção, nos trouxeram a comida a casa.
Muitos desses se não forem trabalhar esta semana não têm dinheiro para viver na próxima e negámos-lhes até a possibilidade de deixar temporariamente de trabalhar com um subsídio de desemprego universal temporário.
Se a doutrina do confinamento estava certa, o vírus transmitir-se-ia agora mais pelos não confinados. E assim foi.
Mas quando o vírus desceu na escala social, a abordagem começou a mudar. No bairro da Jamaica já não vimos os polícias simpáticos e pedagógicos que aconselhavam os automobilistas na Ponte 25 de abril, nem os encerramentos de estabelecimentos fora das câmaras de televisão. Vimos - porque deliberadamente nos quiseram mostrar - conferências de imprensa policiais e corpo de intervenção a postos.
Os estudos já o demonstraram, o vírus espalhou-se mais pelos concelhos com mais industrialização e níveis socio-económicos mais baixos. Era de esperar. O que não era de esperar é que o discurso da culpabilidade dos pobres, erigidos de novo a classes perigosas, fosse tão rápido a voltar.
De repente a linha de comunicação passou a ser a de que há uns concelhos onde há pândega universal, festas ilegais, idas ao café e consumo de álcool. Há séculos que os poderes instituídos tratam assim os problemas de saúde quando descem na escala social. O mundo mudou muito, mas lembrei-me de novo do fantástico livro de Engels sobre a situação da classe trabalhadora Inglaterra em meados do século XIX,.
De repente esquecemos que estas pessoas e estas freguesias continuaram a ir trabalhar, vivem precariamente, pelo que o vírus correria necessariamente o risco de as apanhar, como em tantas pandemias passadas.
É altura de olhar mais para os seus locais de trabalho, para as condições em que têm que lá chegar, para as condições em que vivem. Dá mais trabalho mas é mais eficaz e mais justo que voltar a expandir a ideia das classes perigosas e descontroladas ou de que os pobres adoecem porque fazem muitas festas. Estes nem foram sequer fazer ski.
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