A entrevista de Jerónimo de Sousa ao Expresso, depois das declarações que António Costa tinha feito sobre o PCP nada avança sobre propostas concretas para depois de outubro, mas reforça um dos elementos centrais da ligação entre a liderança do PS e a do PCP. Nestes dois partidos, ao mais alto nível, a relação é definida pelos gestos de cavalheirismo e a troca de palavras de honra.
Não é fácil atingir esse nível de confiança e perceber como se lá chegou será obra de historiadores, provavelmente trabalhando sobre materiais que virão pelo menos desde a segunda metade dos anos oitenta e ainda sob a liderança de Cunhal.
O PCP e o PS foram historicamente antagonistas, estiveram de diferentes lados da barricada em praticamente todas as grandes decisões estratégicas do país desde a defesa da democracia liberal à adesão à União Europeia, passando pela privatização dos setores estratégicos e o desmantelamentos da reforma agrária no Alentejo e Ribatejo. Mas também governaram juntos a Câmara de Lisboa e cooperaram estreitamente para eleger Jorge Sampaio contra Cavaco Silva. Talvez tivessem, ainda antes disso, apalavrado uma solução de governo parecida com a geringonça - de novo a honra e não o papel - quando Soares se recusou a indigitar Constâncio para Primeiro-Ministro, convocando as eleições que abriram em 1987 o caminho à maioria absoluta do PSD.
Mas, voltando ao presente, é claro que a estratégia do PCP, vista pela entrevista de Jerónimo de Sousa ao Expresso se define por três vetores: demarcação do PS nas questões laborais e na Uniam Europeia, prudência quanto às ambições eleitorais e cavalheirismo face a António Costa, calibrando as reivindicações futuras possíveis pelo pessimismo quanto à capacidade de conter eleitoralmente o PS ou capitalizar a geringonça.
Se estou a ver bem, o debate Costa-Jerónimo será uma cordata conversa de cavalheiros da qual nenhum de nós retirará nenhum sinal concreto sobre o que cada um deles fará a seguir, mesmo que os próprios já saibam o que seja e os seus partidos já o estejam a ponderar em qualquer cenário eleitoral.
31.8.19
30.8.19
O BE já subiu a parada
A pergunta de ontem já tem uma resposta.
Se o PS disse o suficiente para se perceber que tentará governar com o mínimo de condicionamento possível dos parceiros de geringonça, desejavelmente remetidos (como aconteceu no segundo mandato de Costa em Lisboa) à condição de parceiros voluntários, por força de uma maioria absoluta tão menos provável nos resultados quanto mais pareça possível nas previsões; agora foi o BE a deixar claro por diversas vias e protagonistas o que pretende.
A ambição do BE quanto ao modo como influencia o próximo governo não está auto-limitada pelo seu posicionamento programático, nem pela divergência com o PS em assuntos de cosmovisão ou política internacional, mas pela relação de forças. O BE já não é nem um partido de protesto, nem um partido de causas, agora é também um partido de poder (no mesmo sentido em que se CDS o é na direita).
Agora o BE quer ter no próximo governo uma posição tão forte quanto o seu resultado eleitoral lhe permita. Para o BE, o centro da discussão nestas eleições legislativas é se crescerá o suficiente não apenas para impedir pela esquerda uma maioria absoluta do PS mas também para garantir, no mínimo, uma geringonça II em que possa fazer mais exigências e, no máximo, reivindicar uma participação no governo.
Ao contrário de há quatro anos, o BE não parte para estas eleições só com ambições de agenda. E, tal como o PS, tem um objetivo que acha tão mais possível quanto menos se falar dele, o de ter uma votação suficientemente forte para chegar ao Conselho de Ministros, isto é, bastante acima dos 10% e a aproximar-se do seu dobro.
Problemas desta estratégia? Uma parte dos eleitores à esquerda que não quer uma maioria absoluta do PS também não acha o Bloco suficientemente preparado para ser governo. E, se o PS crescer à direita e o PCP não tiver uma hecatombe (ou o PAN tiver uma subida suficientemente forte), não é difícil imaginar António Costa a condicionar o BE com a possibilidade de uma geringonça II que não tenha exatamente os mesmos parceiros da primeira. Esta ideia parece-vos estranha? Só depois da noite eleitoral se poderá ver se ela se entranha.
29.8.19
Nenhum partido de esquerda vai subir a parada?
A “geringonça” funcionou. Este é o facto determinante destas eleições legislativas. Mas ela foi possível porque apenas um dos partidos que a constituíram aspirava a governar. Os outros queriam marcar a agenda política sem partilhar o poder. O PS foi cuidadoso a cumprir aquilo com que se comprometeu nos entendimentos limitados que o condicionaram e o BE, o PCP e os Verdes separaram sempre a agenda acordada dos pontos não acordados, não deixando que os segundos prejudicassem os primeiros.
Na execução orçamental, bem tentou o PSD agitar as àguas com os instrumentos pesados ativados pelo Ministério das Finanças, mas tendo o Governo conseguido sempre evitar orçamentos rectificativos, os problemas que poderiam vir por esse lado foram sempre minimizados.
Parece hoje claro que o PS, se preferia uma maioria absoluta, sabe que as suas hipóteses de a ter diminuem com a consciência pelo eleitorado da probabilidade de que ocorra. Pelo que a estratégia do PS para a campanha eleitoral se torna clara - tentar a maioria absoluta sem anunciar a tentativa e prometer a geringonça de novo se a tentativa não anunciada se não concretizar.
Com isto, o PS coloca uma pergunta aos eleitores - querem dar-lhe força para governar sozinho? E haverá no centro e à direita quem responda positivamente.
Mas coloca também uma pergunta aos parceiros da geringonça - voltam a estar disponíveis para influenciar a agenda sem partilhar o poder? De quem resposta positivamente a esta segunda pergunta depende, em caso de ausência de maioria absoluta, a governabilidade do país. E, vendo os discursos iniciais, o PS parece contar com agendas mínimas dos partidos à sua esquerda. Será realista pensar que Bloco e PCP não subirão a parada no que pedem em novos acordos de legislatura? Se não o fizerem será para mim surpreendente, mas excelente para a governabilidade do país.
Na execução orçamental, bem tentou o PSD agitar as àguas com os instrumentos pesados ativados pelo Ministério das Finanças, mas tendo o Governo conseguido sempre evitar orçamentos rectificativos, os problemas que poderiam vir por esse lado foram sempre minimizados.
Parece hoje claro que o PS, se preferia uma maioria absoluta, sabe que as suas hipóteses de a ter diminuem com a consciência pelo eleitorado da probabilidade de que ocorra. Pelo que a estratégia do PS para a campanha eleitoral se torna clara - tentar a maioria absoluta sem anunciar a tentativa e prometer a geringonça de novo se a tentativa não anunciada se não concretizar.
Com isto, o PS coloca uma pergunta aos eleitores - querem dar-lhe força para governar sozinho? E haverá no centro e à direita quem responda positivamente.
Mas coloca também uma pergunta aos parceiros da geringonça - voltam a estar disponíveis para influenciar a agenda sem partilhar o poder? De quem resposta positivamente a esta segunda pergunta depende, em caso de ausência de maioria absoluta, a governabilidade do país. E, vendo os discursos iniciais, o PS parece contar com agendas mínimas dos partidos à sua esquerda. Será realista pensar que Bloco e PCP não subirão a parada no que pedem em novos acordos de legislatura? Se não o fizerem será para mim surpreendente, mas excelente para a governabilidade do país.
19.8.19
Os governos não ganham greves por 3-0
A resposta de António Costa sobre o dispositivo posto em marcha face à greve dos combustíveis sofre de dois erros de abordagem significativos quando se fala de um primeiro-ministro de esquerda que comenta o seu dever de arbitragem entre direitos num conflito laboral.
O governo não ganhou 3-0 à greve porque, se quisermos ir pela analogia futebolística, era árbitro e não equipa no terreno. O seu papel era o de impedir que o direito à greve não colidisse com a satisfação de necessidades fundamentais e a sua alegria por tê-lo conseguido deveria ficar contida a ter sido um árbitro eficaz.
A escolha de um agradecimento aos militares pelo seu contributo na redução dos efeitos da greve para início de périplo aos que diminuíram os efeitos da greve, sendo provavelmente merecida, é também um erro de perspectiva de um Primeiro-Ministro de esquerda. Os primeiros a quem há que agradecer é aos trabalhadores que acataram os serviços mínimos - e parecem ter sido bastantes - senão a requisição civil não seria tão limitada e circunscrita.
Quando um Primeiro-Ministro agradece antes de mais e primeiro que a todos os outros aos militares o seu papel na limitação dos efeitos de uma greve, desculpem, mas a minha alma de esquerda fica dorida.
O governo não ganhou 3-0 à greve porque, se quisermos ir pela analogia futebolística, era árbitro e não equipa no terreno. O seu papel era o de impedir que o direito à greve não colidisse com a satisfação de necessidades fundamentais e a sua alegria por tê-lo conseguido deveria ficar contida a ter sido um árbitro eficaz.
A escolha de um agradecimento aos militares pelo seu contributo na redução dos efeitos da greve para início de périplo aos que diminuíram os efeitos da greve, sendo provavelmente merecida, é também um erro de perspectiva de um Primeiro-Ministro de esquerda. Os primeiros a quem há que agradecer é aos trabalhadores que acataram os serviços mínimos - e parecem ter sido bastantes - senão a requisição civil não seria tão limitada e circunscrita.
Quando um Primeiro-Ministro agradece antes de mais e primeiro que a todos os outros aos militares o seu papel na limitação dos efeitos de uma greve, desculpem, mas a minha alma de esquerda fica dorida.
16.8.19
E se Rui Rio tivesse uma estratégia adequada ao momento?
Todos os dias alguém faz notícia de mais uma agitação nas listas do PSD. Um candidato do aparelho do partido que não aceitou o lugar atribuído, um “histórico” que se sente ofendido por ser preterido por alguém sem currículo partidário suficiente, sem notoriedade nacional, sem experiência.
Para qualquer lado para que me vire, seja para dentro do PSD, para os seus partidos adversários ou mesmo para os jornalistas que seguem a política tudo o que Rio faz é visto como sinal de confusão, fraqueza, desorientação estratégica.
Como não conheço quase nenhum dos políticos que Rio vai trazer para a ribalta - passei em grande parte fora do país os últimos 14 anos - não posso dizer com segurança se os comentadores podem estar todos tão errados quanto me parece.
Mas o que vejo na estratégia de Rio é parecido com o que vi fazer a Constâncio, Sampaio e Guterres depois do cataclismo do PS que se seguiu à liderança do partido de Mário Soares e ao breve e trágico episódio da candidatura de Almeida Santos.
A crise do PSD é profunda. Portugal teve sucesso na estratégia que o passismo considerava suicida (não esqueçam que o próprio Passos disse que se o país melhorasse com ela votaria PS nestas legislativas). Nenhum protagonista de Passos seria hoje credível e ninguém no eleitorado seguiria uma estratégia de crítica ao PS baseada na que Passos tentou na sua última fase de líder - a de que o país caminhava para o desastre, de que o diabo se aproximava.
O caminho de Rio é estreitíssimo e algumas das suas apostas revelar-se-ão possivelmente grandes erros. Voltando ao PS de 1986, consigo recordar nos protagonistas que então se lançaram alguns que ficaram bem aquém das expectativas.
Mais, é provável que a aposta do PSD esteja centrada em recuperar o poder em quatro ou oito anos e agora apenas em sobreviver e reverter o caminho de declínio, sobretudo em segmentos urbanos, escolarizados, jovens e fiscalmente conservadores, que acham a geringonça em geral e mesmo o PS sózinho incapazes de governar tão liberalmente o Estado quanto gostariam, de fazer os cortes orçamentais que defendem, de retroceder na saúde, no trabalho e na proteção social como quereriam.
Mas, parece-me que ao contrário de quase todos os que ouço e leio, a estratégia de Rio não é suicida ou caótica; é a de enfrentar um aparelho partidário anquilosado e decadente (não é o único) e lançar as sementes de um novo posicionamento político no centro-direita e sobretudo de criar protagonistas a quem o passismo não faça cadastro.
Consigo ver os problemas e os erros de Rio, mas se fosse seu conselheiro e quisesse aspirar a regressar ao poder em quatro a oito anos não lhe recomendava nada muito diferente do que está a fazer.
Para qualquer lado para que me vire, seja para dentro do PSD, para os seus partidos adversários ou mesmo para os jornalistas que seguem a política tudo o que Rio faz é visto como sinal de confusão, fraqueza, desorientação estratégica.
Como não conheço quase nenhum dos políticos que Rio vai trazer para a ribalta - passei em grande parte fora do país os últimos 14 anos - não posso dizer com segurança se os comentadores podem estar todos tão errados quanto me parece.
Mas o que vejo na estratégia de Rio é parecido com o que vi fazer a Constâncio, Sampaio e Guterres depois do cataclismo do PS que se seguiu à liderança do partido de Mário Soares e ao breve e trágico episódio da candidatura de Almeida Santos.
A crise do PSD é profunda. Portugal teve sucesso na estratégia que o passismo considerava suicida (não esqueçam que o próprio Passos disse que se o país melhorasse com ela votaria PS nestas legislativas). Nenhum protagonista de Passos seria hoje credível e ninguém no eleitorado seguiria uma estratégia de crítica ao PS baseada na que Passos tentou na sua última fase de líder - a de que o país caminhava para o desastre, de que o diabo se aproximava.
O caminho de Rio é estreitíssimo e algumas das suas apostas revelar-se-ão possivelmente grandes erros. Voltando ao PS de 1986, consigo recordar nos protagonistas que então se lançaram alguns que ficaram bem aquém das expectativas.
Mais, é provável que a aposta do PSD esteja centrada em recuperar o poder em quatro ou oito anos e agora apenas em sobreviver e reverter o caminho de declínio, sobretudo em segmentos urbanos, escolarizados, jovens e fiscalmente conservadores, que acham a geringonça em geral e mesmo o PS sózinho incapazes de governar tão liberalmente o Estado quanto gostariam, de fazer os cortes orçamentais que defendem, de retroceder na saúde, no trabalho e na proteção social como quereriam.
Mas, parece-me que ao contrário de quase todos os que ouço e leio, a estratégia de Rio não é suicida ou caótica; é a de enfrentar um aparelho partidário anquilosado e decadente (não é o único) e lançar as sementes de um novo posicionamento político no centro-direita e sobretudo de criar protagonistas a quem o passismo não faça cadastro.
Consigo ver os problemas e os erros de Rio, mas se fosse seu conselheiro e quisesse aspirar a regressar ao poder em quatro a oito anos não lhe recomendava nada muito diferente do que está a fazer.
8.8.19
Combustiveis - os serviços mínimos são proporcionais?
Que serviços mínimos deveriam ter sido fixados para a greve dos motoristas de combustíveis? Claramente aqueles que se revelassem proporcionais e adequados à gestão da tensão entre o direito à greve e a satisfação de necessidades sociais fundamentais.
Para este efeito pouco ou nada deveria interessar o que o comentador Marcelo Rebelo de Sousa pensa do apoio popular à greve ou mesmo as convicções políticas pro ou anti-sindicais do governo.
A reação dos sindicatos aos serviços fixados foi extrema e o caso segue para os tribunais. Mas isso não impede que se debata se eles parecem a um cidadão preocupado com os direitos dos trabalhadores terem sido adequados.
Li o despacho dos serviços mínimos decretados e dei o meu melhor para o fazer com imparcialidade.
É uma lista de serviços mínimos muito exigente, sem dúvida . Será proporcional?
Há que ter em conta, em primeiro lugar, que os sindicatos e as empresas poderiam ter a definição de serviços mínimos acordada, quer em geral por instrumento de regulação coletiva do trabalho quer em concreto por mecanismo de acordo no âmbito desta greve e não conseguiram evitar a situação de entregar esta responsabilidade ao governo nem por uma nem por outra forma.
Deve ter-se presente, em segundo lugar, que os sindicatos escolheram a forma de luta mais extrema possível de entre as que estão disponíveis, a greve por tempo indeterminado e os serviços mínimos tiveram que ser decretados no pressuposto de um conflito prolongado.
A responsabilidade do governo tem que ser avaliada no quadro de que o qualquer serviço não prestado vai, com o tempo, ganhando um peso na rutura de abastecimentos que pode,nas condições sobre as quais o governo teve que decidir, acumular défices que comportam sérios riscos e não pode o governo especular sobre quanto tempo durará realmente uma greve convocada nos termos em que esta o foi.
E, nesses termos, não consegui encontrar nenhum exagero inaceitável nos serviços para os quais foi decretada a obrigatoriedade de 100% de serviços mínimos. Todos eles correspondem a áreas vitais em que o direito à greve não pode colidir desproporcionalmente com as necessidades sociais. Há uma única área de dúvida para mim, a de ter agregado todos os portos e aeroportos a ter que ser abastecidos a 100%, porque se é certo que cobrem atividades econômicas vitais para o país, esse fator não é por si só suficiente para declarar a impossibilidade de uma greve ter efeito sobre eles. Caso diferente é o dos aeródromos e equipamentos usados para combate aos incêndios.
Em tudo o resto poderiam discutir-se detalhes: 75% ou 60%? 50% ou 40%? Mas ninguém pode esquecer que ao fim de algumas semanas os défices acumulados criarão dificuldades reais em todos esses setores e a preocupação de compatibilizar o direito à greve com direitos fundamentais tem que ter sido pensada para o tempo longo, porque foi essa a escolha de quem convocou a greve.
Ou seja, quem se impôs a si próprio serviços mínimos tão pesados foram os sindicatos quando projectaram a mais extrema das formas de luta possíveis num setor tão sensível à satisfação de necessidades sociais quanto o é o setor energético.Dificilmente o governo poderia ter sido menos exigente do que foi e, caso a greve se concretize e prolongue, os portugueses verão que o que agora parece tão pesado afinal o não vai ser e mesmo assim os problemas irao surgir e acumular-se em várias áreas. O que é prova suficiente para mim de que foi respeitado o direito à greve.
Sou um defensor intransigente desse direito, mas também tenho a ideia clara de que os dirigentes sindicais têm o dever de avaliar a proporcionalidade das formas de luta que adoptam e o governo de reagir proporcionalmente aos problemas que lhe colocam. Aqui o Governo agiu equilibradamente, preparando o país para uma situação de conflito longo, que foi a que os sindicatos anunciaram.
Para este efeito pouco ou nada deveria interessar o que o comentador Marcelo Rebelo de Sousa pensa do apoio popular à greve ou mesmo as convicções políticas pro ou anti-sindicais do governo.
A reação dos sindicatos aos serviços fixados foi extrema e o caso segue para os tribunais. Mas isso não impede que se debata se eles parecem a um cidadão preocupado com os direitos dos trabalhadores terem sido adequados.
Li o despacho dos serviços mínimos decretados e dei o meu melhor para o fazer com imparcialidade.
É uma lista de serviços mínimos muito exigente, sem dúvida . Será proporcional?
Há que ter em conta, em primeiro lugar, que os sindicatos e as empresas poderiam ter a definição de serviços mínimos acordada, quer em geral por instrumento de regulação coletiva do trabalho quer em concreto por mecanismo de acordo no âmbito desta greve e não conseguiram evitar a situação de entregar esta responsabilidade ao governo nem por uma nem por outra forma.
Deve ter-se presente, em segundo lugar, que os sindicatos escolheram a forma de luta mais extrema possível de entre as que estão disponíveis, a greve por tempo indeterminado e os serviços mínimos tiveram que ser decretados no pressuposto de um conflito prolongado.
A responsabilidade do governo tem que ser avaliada no quadro de que o qualquer serviço não prestado vai, com o tempo, ganhando um peso na rutura de abastecimentos que pode,nas condições sobre as quais o governo teve que decidir, acumular défices que comportam sérios riscos e não pode o governo especular sobre quanto tempo durará realmente uma greve convocada nos termos em que esta o foi.
E, nesses termos, não consegui encontrar nenhum exagero inaceitável nos serviços para os quais foi decretada a obrigatoriedade de 100% de serviços mínimos. Todos eles correspondem a áreas vitais em que o direito à greve não pode colidir desproporcionalmente com as necessidades sociais. Há uma única área de dúvida para mim, a de ter agregado todos os portos e aeroportos a ter que ser abastecidos a 100%, porque se é certo que cobrem atividades econômicas vitais para o país, esse fator não é por si só suficiente para declarar a impossibilidade de uma greve ter efeito sobre eles. Caso diferente é o dos aeródromos e equipamentos usados para combate aos incêndios.
Em tudo o resto poderiam discutir-se detalhes: 75% ou 60%? 50% ou 40%? Mas ninguém pode esquecer que ao fim de algumas semanas os défices acumulados criarão dificuldades reais em todos esses setores e a preocupação de compatibilizar o direito à greve com direitos fundamentais tem que ter sido pensada para o tempo longo, porque foi essa a escolha de quem convocou a greve.
Ou seja, quem se impôs a si próprio serviços mínimos tão pesados foram os sindicatos quando projectaram a mais extrema das formas de luta possíveis num setor tão sensível à satisfação de necessidades sociais quanto o é o setor energético.Dificilmente o governo poderia ter sido menos exigente do que foi e, caso a greve se concretize e prolongue, os portugueses verão que o que agora parece tão pesado afinal o não vai ser e mesmo assim os problemas irao surgir e acumular-se em várias áreas. O que é prova suficiente para mim de que foi respeitado o direito à greve.
Sou um defensor intransigente desse direito, mas também tenho a ideia clara de que os dirigentes sindicais têm o dever de avaliar a proporcionalidade das formas de luta que adoptam e o governo de reagir proporcionalmente aos problemas que lhe colocam. Aqui o Governo agiu equilibradamente, preparando o país para uma situação de conflito longo, que foi a que os sindicatos anunciaram.
6.8.19
Moçambique, hoje é dia de comemorar. Mas amanhã é necessário começar a pagar o preço que torne a paz realmente possível.
É muito difícil assinar um acordo de paz. Muito mais difícil é cumpri-lo. A paz assinada em Moçambique é promissora. O país enfrenta diversas ameaças e necessita de entendimento para conseguir afirmar-se como sociedade pluralista e segura numa região do mundo em que o perigo espreita.
Há um grande compromisso da comunidade internacional com a reconstrução e o retorno ao desenvolvimento das zonas do país afetadas pelos dois ciclones deste ano. Voltou a haver confiança em que as instituições moçambicanas conseguirão tratar adequadamente alguns dos problemas estruturais que afetam a sua credibilidade, um assunto em que o tratamento a dar à questão ainda não plenamente esclarecida das dívidas ocultas do Estado e instituições públicas não é uma questão menor.
Ao contrário de outros países da África lusófona, Moçambique beneficia há bastante tempo de um esforço continuado de instituições de ajuda ao desenvolvimento de diversos países, em que avultam a cooperação britânica e a cooperação alemã.
Mas há ameaças a este processo de paz que não são pequenas.
O desequilíbrio de desenvolvimento e de investimento entre territórios é gritante e, apesar dos esforços de correção que se devem creditar ao atual Presidente da República, deixaram marcas que não desaparecem de um dia para o outro.
O banditismo social que atualmente se liga em certas zonas de África à emergência de extremismos com legitimação islâmica pode contaminar o país, em particular a partir das suas fronteiras do Norte.
A unidade nacional em países em que a diferença de territórios se cristalizou em diferença de partidos predominantes no apoio popular nunca é fácil de gerir. Por um segundo não pensem sequer em África a propósito do que digo, pensem só na Bélgica, por exemplo.
Os partidos políticos moçambicanos, como em outros países que viveram a sua transição para a independência quando a África do Sul era ainda o país do apartheid, a guerra fria estava ainda viva e as ideologias importadas se sobrepunham à busca de apoio popular, vivem ainda as feridas dessa transição.
A geração que liderou a independência e que com ela ganhou mais, em poder e em dinheiro, habituou-se a um rentismo que não tem lugar no futuro e terá que aceitar a perda de estatuto, de riqueza e de poder para que o país possa desenvolver-se.
Como se tudo isto não bastasse, Moçambique, como todos os outros países pós-conflito vai voltar a ter que gerir na execução deste acordo de paz uma integração de forças armadas que se combateram e a desmobilização de pessoas que não têm modo de vida alternativo ao que tiveram enquanto combatentes. Muitos destes desmobilizados não têm visão do Estado nem ideologia, apenas a alternativa entre um modo de vida atual em que a subsistência era garantida por alguém e um futuro em que podem ser abandonados à pobreza. Outra vez, não pensem só em África, a Colômbia não é muito diferente. Alguns, como sempre acontece, voltarão às armas, sabe-se lá como e com quem e serão tantos mais quanto menos sucesso tiver o processo de criação de paz real para os homens da guerra.
Mas também há sinais encorajadores. Na cerimónia do acordo de paz viam-se os representantes das instituições sempre presentes na paz moçambicana, como os mediadores católicos, a África do Sul, a União Europeia, Portugal. Mas também estes terão que saber passar das palmas que bateram agora aos actos que terão que fazer ainda.
A paz é possível em Moçambique, mas não se constrói só com assinaturas e palmas. Vai custar dinheiro a quem a queira apoiar e partilha do poder a quem a queira viver. Vai exigir apoios concretos às populações do centro e norte e criação de infra-estruturas e de um Estado eficiente, credível e disposto a lutar contra a corrupção e os privilégios de quem está há muito instalado do poder. Vai exigir ouvir as novas gerações e dar oportunidades Aos que estão à espera de poder ser presente e futuro do país.
Há razões para otimismo. Mas não se pode esquecer que a África oriental é uma zona vulnerável. Hoje é dia de comemorar. Mas amanhã é necessário começar a pagar o preço que torne a paz realmente possível.
Há um grande compromisso da comunidade internacional com a reconstrução e o retorno ao desenvolvimento das zonas do país afetadas pelos dois ciclones deste ano. Voltou a haver confiança em que as instituições moçambicanas conseguirão tratar adequadamente alguns dos problemas estruturais que afetam a sua credibilidade, um assunto em que o tratamento a dar à questão ainda não plenamente esclarecida das dívidas ocultas do Estado e instituições públicas não é uma questão menor.
Ao contrário de outros países da África lusófona, Moçambique beneficia há bastante tempo de um esforço continuado de instituições de ajuda ao desenvolvimento de diversos países, em que avultam a cooperação britânica e a cooperação alemã.
Mas há ameaças a este processo de paz que não são pequenas.
O desequilíbrio de desenvolvimento e de investimento entre territórios é gritante e, apesar dos esforços de correção que se devem creditar ao atual Presidente da República, deixaram marcas que não desaparecem de um dia para o outro.
O banditismo social que atualmente se liga em certas zonas de África à emergência de extremismos com legitimação islâmica pode contaminar o país, em particular a partir das suas fronteiras do Norte.
A unidade nacional em países em que a diferença de territórios se cristalizou em diferença de partidos predominantes no apoio popular nunca é fácil de gerir. Por um segundo não pensem sequer em África a propósito do que digo, pensem só na Bélgica, por exemplo.
Os partidos políticos moçambicanos, como em outros países que viveram a sua transição para a independência quando a África do Sul era ainda o país do apartheid, a guerra fria estava ainda viva e as ideologias importadas se sobrepunham à busca de apoio popular, vivem ainda as feridas dessa transição.
A geração que liderou a independência e que com ela ganhou mais, em poder e em dinheiro, habituou-se a um rentismo que não tem lugar no futuro e terá que aceitar a perda de estatuto, de riqueza e de poder para que o país possa desenvolver-se.
Como se tudo isto não bastasse, Moçambique, como todos os outros países pós-conflito vai voltar a ter que gerir na execução deste acordo de paz uma integração de forças armadas que se combateram e a desmobilização de pessoas que não têm modo de vida alternativo ao que tiveram enquanto combatentes. Muitos destes desmobilizados não têm visão do Estado nem ideologia, apenas a alternativa entre um modo de vida atual em que a subsistência era garantida por alguém e um futuro em que podem ser abandonados à pobreza. Outra vez, não pensem só em África, a Colômbia não é muito diferente. Alguns, como sempre acontece, voltarão às armas, sabe-se lá como e com quem e serão tantos mais quanto menos sucesso tiver o processo de criação de paz real para os homens da guerra.
Mas também há sinais encorajadores. Na cerimónia do acordo de paz viam-se os representantes das instituições sempre presentes na paz moçambicana, como os mediadores católicos, a África do Sul, a União Europeia, Portugal. Mas também estes terão que saber passar das palmas que bateram agora aos actos que terão que fazer ainda.
A paz é possível em Moçambique, mas não se constrói só com assinaturas e palmas. Vai custar dinheiro a quem a queira apoiar e partilha do poder a quem a queira viver. Vai exigir apoios concretos às populações do centro e norte e criação de infra-estruturas e de um Estado eficiente, credível e disposto a lutar contra a corrupção e os privilégios de quem está há muito instalado do poder. Vai exigir ouvir as novas gerações e dar oportunidades Aos que estão à espera de poder ser presente e futuro do país.
Há razões para otimismo. Mas não se pode esquecer que a África oriental é uma zona vulnerável. Hoje é dia de comemorar. Mas amanhã é necessário começar a pagar o preço que torne a paz realmente possível.
Estamos em stress com a água
A água é um dos domínios em que a pressão da sobrepopulação sobre os recursos ecológicos mais se fazem sentir. Há umas décadas, li a tese de Maurice Godelier sobre como o acesso à este recurso básico condicionava a organização social a partir de exemplos da etnologia em África e a interação entre sociedades possíveis e recursos naturais parecia-me um problema de “sociedades simples”. Mas a realidade é bem mais complexa e nações inteiras, largas zonas do planeta vivem hoje com dificuldades crónicas de acesso à água, com tudo o que a ela vem associado. Segundo esta notícia do Guardian, um quarto da população mundial enfrenta restrições muito severas no acesso à água (“very high water stress”). Em alguns casos, a tecnologia tem permitido encontrar soluções engenhosas para contornar este constrangimento (veja-se Israel). Eu próprio já visitei em Singapura uma “fábrica” de reciclagem de águas residuais, que é transformada de novo em água potável. Eu bebi-a. Ainda é um processo muito caro, mas não se surpreendam com os que a tecnologia pode conseguir.
Entretanto, se pensam que este é um problema da Ásia e do Médio Oriente, não se esqueçam que a Península Ibérica aparece logo no segundo nível de restrição (“high water stress”), enquanto continuamos alegremente a usar água potável para os mais diversos usos, desde regar jardins a lavar estradas, para os quais poderíamos estar já a usar água reciclada, ainda que não com a mesma sofisticação da que bebi em Singapura. E nem estou a falar da educação para um consumo mais responsável da água em nossas casas.
Noutro texto falei do que nas nossas vidas tem que mudar com as alterações climáticas. O uso da água é seguramente um exemplo da necessidade de induzir mudança de hábitos e padrões de consumo em que muito mais podia estar a ser feito, mesmo se já somos um país-exemplo na nossa proteção de recursos hídricos. Tão exemplo, aliás, que por iniciativa da Parceria Portuguesa para a Água, o Banco Mundial vai em breve estudar a experiência portuguesa e há já um acordo apoiado pelo Banco Mundial do nosso regulador do setor ao regulador egípcio.
Entretanto, se pensam que este é um problema da Ásia e do Médio Oriente, não se esqueçam que a Península Ibérica aparece logo no segundo nível de restrição (“high water stress”), enquanto continuamos alegremente a usar água potável para os mais diversos usos, desde regar jardins a lavar estradas, para os quais poderíamos estar já a usar água reciclada, ainda que não com a mesma sofisticação da que bebi em Singapura. E nem estou a falar da educação para um consumo mais responsável da água em nossas casas.
Noutro texto falei do que nas nossas vidas tem que mudar com as alterações climáticas. O uso da água é seguramente um exemplo da necessidade de induzir mudança de hábitos e padrões de consumo em que muito mais podia estar a ser feito, mesmo se já somos um país-exemplo na nossa proteção de recursos hídricos. Tão exemplo, aliás, que por iniciativa da Parceria Portuguesa para a Água, o Banco Mundial vai em breve estudar a experiência portuguesa e há já um acordo apoiado pelo Banco Mundial do nosso regulador do setor ao regulador egípcio.
4.8.19
agora somos todos ecologistas. Porque não estamos a conseguir evitar o aquecimento global?
A emergência climática é um tema em que se revelam algumas das maiores dificuldades da política contemporânea.
O largo consenso científico em torno da ideia de que o planeta está a aquecer a um ritmo insustentável, tal como acontece muitas vezes com a ciência, é contra intuitivo para a parte da população que o confunde com o clima do dia. Afinal, não foi fácil convencer o mundo que não é o sol que se move. E isso permite a populistas fazer o discurso negacionista, para, como Trump, proteger o lobby da energia fóssil, ou como Bolsonaro, acelerar a trágica deflorestação da Amazónia.
É certo que o consenso científico passou já para as disciplinas que procuram orientar a humanidade para evitar o desastre. Temos economistas a escrever sobre o modo como incluir as questões ambientais nos preços da atividade económica, urbanistas a desenhar cidades inteligentes com menores consumos energéticos, especialistas em transportes a conceber formas de mobilidade menos dispendiosas em energia.
E, ainda do lado das notícias positivas, temos as decisões de cimeiras internacionais e os planos de ação que vinculam grande parte da humanidade - como no Acordo de Paris - a objetivos que permitirão ainda prevenir o desastre, como a neutralidade carbónica até 2050.
Mais, a percepção de que há um limite ecológico ao que podemos fazer com a terra evoluiu nos últimos 40 anos de um pensamento de franjas académicas e políticos radicais para os autores mais convencionais e os políticos mais institucionais.
Num certo sentido, agora somos todos ecologistas. Mas, então porque não estamos a conseguir evitar o aquecimento global a um ritmo acima do previsto? Porque parecemos caminhar para o desastre que quase todos dizemos que sabemos que vai acontecer e queremos evitar?
Pode bem acontecer que a dificuldade de passar das palavras aos atos tenha a ver com as inércias do capitalismo democrático. Os perdedores da adaptação necessária - produtores de combustíveis fósseis, indústrias de elevado consumo energético, agroindustria e pecuária - ainda não encontraram modelos de negócio alternativos. E só o Estado os pode apressar, para o que precisa de por em prática os incentivos e sanções adequados. Mas os Estados estão a ser muito tímidos nas medidas drásticas necessárias - veja-se a questão do preço do carbono.
Por outro lado, entre os que mais terão que mudar os seus hábitos estão segmentos importantes dos eleitorados que definem quem governa. Pedir às classes médias que abdiquem de um conforto que adquiriram recentemente, do carro de família às férias intercontinentais, ou que se abstenham de consumos insustentáveis mas inerentes ao padrão de vida atual não se faz com determinismos técnicos, em nome de verdades não percepcionáveis e de modo autoritário.
Se não é o negacionismo da emergência climática que conduz o eleitorado europeu e americano para o populismo, não se pode desvalorizar o papel que pode ter como resistência à chegada ao terreno das medidas que tal emergência exige.
Por isso quando vejo todos os nossos planos ambiciosos para 2030 e 2050 e não os vejo ainda acompanhados das medidas com que se vai promover a adesão das pessoas às mudanças necessárias nos modos de vida ou estimular as empresas a investir de modo sustentável, nos novos negócios, fico com a ideia de que tem que ser recalibrada a estratégia. Por agora está toda orientada para decretar mudanças. Terá que ser reorientada para as sugerir, propor, discutir, ganhar adesão, não pressupor e dar como garantida a submissão.
O largo consenso científico em torno da ideia de que o planeta está a aquecer a um ritmo insustentável, tal como acontece muitas vezes com a ciência, é contra intuitivo para a parte da população que o confunde com o clima do dia. Afinal, não foi fácil convencer o mundo que não é o sol que se move. E isso permite a populistas fazer o discurso negacionista, para, como Trump, proteger o lobby da energia fóssil, ou como Bolsonaro, acelerar a trágica deflorestação da Amazónia.
É certo que o consenso científico passou já para as disciplinas que procuram orientar a humanidade para evitar o desastre. Temos economistas a escrever sobre o modo como incluir as questões ambientais nos preços da atividade económica, urbanistas a desenhar cidades inteligentes com menores consumos energéticos, especialistas em transportes a conceber formas de mobilidade menos dispendiosas em energia.
E, ainda do lado das notícias positivas, temos as decisões de cimeiras internacionais e os planos de ação que vinculam grande parte da humanidade - como no Acordo de Paris - a objetivos que permitirão ainda prevenir o desastre, como a neutralidade carbónica até 2050.
Mais, a percepção de que há um limite ecológico ao que podemos fazer com a terra evoluiu nos últimos 40 anos de um pensamento de franjas académicas e políticos radicais para os autores mais convencionais e os políticos mais institucionais.
Num certo sentido, agora somos todos ecologistas. Mas, então porque não estamos a conseguir evitar o aquecimento global a um ritmo acima do previsto? Porque parecemos caminhar para o desastre que quase todos dizemos que sabemos que vai acontecer e queremos evitar?
Pode bem acontecer que a dificuldade de passar das palavras aos atos tenha a ver com as inércias do capitalismo democrático. Os perdedores da adaptação necessária - produtores de combustíveis fósseis, indústrias de elevado consumo energético, agroindustria e pecuária - ainda não encontraram modelos de negócio alternativos. E só o Estado os pode apressar, para o que precisa de por em prática os incentivos e sanções adequados. Mas os Estados estão a ser muito tímidos nas medidas drásticas necessárias - veja-se a questão do preço do carbono.
Por outro lado, entre os que mais terão que mudar os seus hábitos estão segmentos importantes dos eleitorados que definem quem governa. Pedir às classes médias que abdiquem de um conforto que adquiriram recentemente, do carro de família às férias intercontinentais, ou que se abstenham de consumos insustentáveis mas inerentes ao padrão de vida atual não se faz com determinismos técnicos, em nome de verdades não percepcionáveis e de modo autoritário.
Se não é o negacionismo da emergência climática que conduz o eleitorado europeu e americano para o populismo, não se pode desvalorizar o papel que pode ter como resistência à chegada ao terreno das medidas que tal emergência exige.
Por isso quando vejo todos os nossos planos ambiciosos para 2030 e 2050 e não os vejo ainda acompanhados das medidas com que se vai promover a adesão das pessoas às mudanças necessárias nos modos de vida ou estimular as empresas a investir de modo sustentável, nos novos negócios, fico com a ideia de que tem que ser recalibrada a estratégia. Por agora está toda orientada para decretar mudanças. Terá que ser reorientada para as sugerir, propor, discutir, ganhar adesão, não pressupor e dar como garantida a submissão.
1.8.19
as leis absurdas têm pais e mães
Há muitos anos, vivia-se a perestroika, um sociólogo soviético, Abel Agambegyan, veio ao ISCTE e fez uma conferência que muito me impressionou. Talvez a que mais me impressionou em toda a minha vida, conjuntamente com uma outra, a que Eric Hobsbawm deu, também no iSCTE, mas que não é agora para aqui convocada.
Agambegyan tinha uma tese sobre o declínio do poder soviético em que incluía uma floresta jurídica e regulamentar em que nunca ninguém podia ter a certeza de estar a cumprir a lei e ficava vulnerável a poderes perversos.. Havia leis contraditórias, mal feitas, acumuladas ao longo de gerações, que chegavam a contradizer-se materialmente ou que tinham um espírito que deixara de corresponder à prática social ou à realidade do país. Paradoxalmente, o excesso de produção legislativa bloqueava a possibilidade de um estado de direito, porque dava, no caso, ao partido e a tribunais não independentes ou à polícia um poder enorme de perseguir ad hominem
Claro que qualquer paralelismo entre a URSS e Portugal é forçado e anacrónico, mas vendo o que se passa no debate político com a consideração das leis não consegui evitar recordar Agambegyan - um estado de direito tem que ser simples, previsível, claro e quando evolui por ondas, aos serviço do líder de ocasião e das suas angústias, reagindo à manchete do dia, cria uma floresta que pode ser ridícula, incumprivel, mas sobretudo perigosa, porque já ninguém sabe quando está a a cumprir ou não a legislação em vigor.
Um dos domínios em que se age assim é o da auto-regulação dos políticos. Sempre que um escândalo surge, se alguém diz mata,logo alguém diz esfola e facilmente se perde a noção dos principios, da proporcionalidade , do bom senso. E se há normas que considero absurdas, ridículas, completamente fora da experiência do cidadão normal, há algo que não posso deixar de dizer - foram os legisladores que as criaram. Podem agora os intérpretes salvar o país de alguns disparates que os legisladores criaram por via de interpretações inteligentes e adequadas.. Mas há armadilhas ao bom nome dos políticos que, por muito absurdas que pareçam, foram eles que criaram (e continuam a criar). Não há forma de sacudirem essa água dos seus capotes.
Agambegyan tinha uma tese sobre o declínio do poder soviético em que incluía uma floresta jurídica e regulamentar em que nunca ninguém podia ter a certeza de estar a cumprir a lei e ficava vulnerável a poderes perversos.. Havia leis contraditórias, mal feitas, acumuladas ao longo de gerações, que chegavam a contradizer-se materialmente ou que tinham um espírito que deixara de corresponder à prática social ou à realidade do país. Paradoxalmente, o excesso de produção legislativa bloqueava a possibilidade de um estado de direito, porque dava, no caso, ao partido e a tribunais não independentes ou à polícia um poder enorme de perseguir ad hominem
Claro que qualquer paralelismo entre a URSS e Portugal é forçado e anacrónico, mas vendo o que se passa no debate político com a consideração das leis não consegui evitar recordar Agambegyan - um estado de direito tem que ser simples, previsível, claro e quando evolui por ondas, aos serviço do líder de ocasião e das suas angústias, reagindo à manchete do dia, cria uma floresta que pode ser ridícula, incumprivel, mas sobretudo perigosa, porque já ninguém sabe quando está a a cumprir ou não a legislação em vigor.
Um dos domínios em que se age assim é o da auto-regulação dos políticos. Sempre que um escândalo surge, se alguém diz mata,logo alguém diz esfola e facilmente se perde a noção dos principios, da proporcionalidade , do bom senso. E se há normas que considero absurdas, ridículas, completamente fora da experiência do cidadão normal, há algo que não posso deixar de dizer - foram os legisladores que as criaram. Podem agora os intérpretes salvar o país de alguns disparates que os legisladores criaram por via de interpretações inteligentes e adequadas.. Mas há armadilhas ao bom nome dos políticos que, por muito absurdas que pareçam, foram eles que criaram (e continuam a criar). Não há forma de sacudirem essa água dos seus capotes.