1.5.20

A minha vontade de obedecer aumentou

Na saída do estado de emergência há uma série de proibições que vão passar a ser recomendações e parece que andam por aí juristas preocupados com o facto de o Estado abdicar de usar restrições de direitos, liberdades e garantias a partir da próxima segunda-feira.
O próprio Primeiro-Ministro na entrevista à RTP sentiu necessidade de avisar que poderia ser necessário dar passos atrás, embora também tenha dito, com uma clareza que deve ser saudada, que, com exceção da proibição do direito à greve (e do direito de resistência, acrescento eu), nada mais o estado de urgência trouxe que não pudesse ter sido feito sem ele. E essa proibição do direito à greve, acrescento, ficará para a história como a mais inútil das medidas tomadas. Portugal em 2020 não teria sido o Chile de 1973 e com a Autoridade das Condições de Trabalho em coma, devia ter-se dado um sinal  de força aos sindicatos. Foram eles, aliás, quem, com alguns partidos, protagonizou a pouca vigilância contra abusos no mundo do trabalho que foi possível ter.
Em Portugal manteve-se sempre o Parlamento a funcionar, permitindo um mínimo de escrutínio da atividade do governo, mesmo em estado de emergência.
O que se prepara para maio é provavelmente o plano que sempre deveríamos ter tido, reagindo proporcionalmente à intensidade da ameaça, restringindo só o que tiver que ser restringido e apelando à responsabilidade cívica.
Há nas decisões sobre o que reabre e o que não reabre muitos aspetos que podem ser discutíveis, mas revelam o que um governo dialogante tem que arbitrar. E ajudam a perceber quais são mesmo os poderes que não podem ser afrontados, onde estão os interesses verdadeiramente organizados. Não resisto a convidar à reflexão de porque tem por força que fazer-se os jogos que faltam para acabar o campeonato de futebol da I divisão mas várias modalidades desportivas não podem retomar-se. Ou como li no Azar do Kralj, o aspeto caricato de como vai poder defender-se um canto sem um ajuntamento de mais de 10 pessoas. Ou porque se pôde fazer uma revolução de contornos e consequências difíceis de antecipar em todo o sistema educativo mas se mantêm os sacrossantos exames de acesso ao ensino superior, com provas feitas antes da pandemia que os guardiões do templo recusaram rever, impondo aos alunos do 11o e 12o anos um regresso à escola que não é para aprender mas para poderem ser seriados com um simulacro de igualdade de oportunidades.
Nada disto prejudica a criteriosa ação do governo e a inteligente gestão desta fase em que volta a estar aos comandos da ação governativa enfraquecendo o condomínio com Belém a que, com felicidade e graça, o Pedro Adao e Silva chama o Bloco Central de palácios.
Há juristas que se preocupam com a fragilidade jurídica do recurso à noção de dever cívico geral de recolhimento. Compreendo-os. Apenas acreditam no poder coercivo do Estado que fica um pouco mais fraco. Mas saúdo o governo pelo voto de confiança na solidez das conviccoes democráticas dos portugueses. O mês de abril demonstrou que não somos um povo de vandalos e não ocorreu nenhum dos cenários distópicos que os autoritários não se percebe se receiam ou desejam para mostrar as suas garras. Não houve violência nem pilhagens, nem aumento da insegurança.
O governo convida-nos a que em maio (e junho e...) demonstremos que se pode ouvir com respeito as orientações do governo e que somos adultos e responsáveis, capazes de perceber que a ameaça não desapareceu e temos a responsabilidade individual e coletiva de a combater. Recomendar-me que fique em casa em vez de me proibir de sair, não é um sinal de fraqueza do Estado, mas de força, de confiança na comunidade. A confiança de que se faz a viabilidade da democracia. Ontem, com este plano, o governo deu-nos uma lição de confiança. Contra autoritarismos e securitarismos. Cabe-nos agora estar à altura dessa confiança.
Eu confesso que a minha vontade de obedecer ao governo ontem aumentou, em vez de diminuir.

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