20.7.17

Justiça e política: conta, peso e medida

Só esta semana e só pelo Bloco de Esquerda já foi anunciado o envio ao Ministério Público de dois dossiers políticos - as suas conclusões de uma das comissões de inquérito da CGD e o conteúdo das declarações de André Ventura.
Ao contrário de muitos outros, entendo que a relação entre a política e a justiça está muito mal definida em Portugal e que o que poderia estar razoavelmente bem legislado sobre o assunto é abastardado pela prática de uns e outros, políticos e magistrados, governo, parlamento, partidos e tribunais, sem esquecer os jornais e as televisões.
Tudo isto embrulhado numa retórica cínica em que quer os que usam os media para fazer (in)justiça quer os que usam a justiça para fazer (má) política fingem confundir a real separação de poderes com a inibição de análise crítica entre esses poderes, necessária à moderação de uns e outros. Exemplos? A timidez - será receio? - com que os políticos analisam o uso dado pelo tribunais a leis que são da república e para  aplicar por seres humanos a seres humanos. Mais exemplos? A voracidade - será activismo? - com que media e "fontes da
investigação" procedem a julgamentos populares sumários, muitas vezes quando os visados não podem sequer exercer adequadamente o direito de defesa.
O direito a um processo justo é um direito fundamental e o debate político é uma instituição que deve centrar-se em argumentos e não em ameaças ou pressões.
Tirem os tribunais da política e a política dos tribunais e ajudam a democracia. Mas para isso é preciso o bom-senso pessoal e o respeito pelo papel de cada instituição que por vezes escasseia em quem mais devia, por natureza das funções que desempenha, tê-lo.

19.7.17

A lição de André Ventura

André Ventura não é ignorante, nem o seu discurso sobre os  ciganos nasce de uma reacção primária e naif às complexidades da inserção das comunidades ciganas na sociedade portuguesa ou, interligadamente, de uma percepção primária e sumária de como funciona o Estado social português.
O discurso de André Ventura é despudoradamente eleitoral. Provavelmente saiu de um focus group que lhe diz que as suas possibilidades eleitorais estão nos segmentos ressentidos dos estratos mais baixos das classes médias que lutam arduamente para ter um nível de vida de mínima qualidade e que não atribuem as suas dificuldades às injustiças do mundo mas aos seus companheiros de sofrimento que estão um ou dois patamares abaixo e vivem em habitação social, recebem transferências sociais, têm vidas precárias. O que inspira André Ventura é a convicção de que as correntes sociais de estigmatização podem ser a sua oportunidade eleitoral.
Não me custa a acreditar que o jurista, professor universitário, etc André Ventura não fosse racista. Por isso mesmo o se comportamento político é repugnante. Por não sair das catacumbas da ignorância de onde sai o PNR, mas da consciente tentativa de manipulação política de sentimentos racistas, de ódio e de estigmatização, o discurso do Professor André Ventura marca a tentativa de ser um protagonista local do projecto político da direita nacionalista que floresce noutras partes  da Europa. Que o PSD não ponha entre si e esse discurso um muro intransponível de condenação diz-nos de quanto o partido navega hoje nas àguas da direita intolerante, seja por estratégia, táctica ou desnorte.
Mas só há uma forma de dar uma lição ao Professor André Ventura. Conseguir que tenha uma derrota estrondosa em Loures. Pessoas do seu calibre não reconhecem a luta das ideias e não se convencem. Vencem ou são vencidas. O eleitorado de Loures tem nas mãos a oportunidade de dizer a Portugal que continua a não ser desejado nem apoiado o discurso político dos  Le Pens ou Orbans deste mundo. E qualquer voto que não no PSD serve para esse fim. Desta vez até o CDS deu uma lição de sentido de responsabilidade e cultura democrática aos seus parceiros da direita parlamentar,

7.7.17

Seria justo taxar o património para financiar cuidados a idosos?

Como garantir o financiamento dos cuidados aos idosos sem agravar fracturas geracionais? Pode taxar-se os idosos para financiar esses cuidados? Se pudermos, devemos? Como? seria justo taxar o património dos idosos para financiar adequadamente os cuidados, fazendo uma gestão colectiva dos riscos de necessidade de cuidados? Por enquanto, no país dos lares ilegais e do salve-se quem puder para arranjar vaga num lar, ou dos crescentes maus-tratos a idosos de que se fala em surdina, fechamos os olhos ao assunto. Mas, se vamos viver mais e com mais tempo a necessitar de cuidados, se vamos sofrer mais de dependências ligadas ao envelhecimento e, por exemplo, de demências senis e se queremos ser justos para com os que sempre perdem, isto é, para com os idosos de baixos recursos, um dia temos que começar a conversar sobre este assunto e não andaremos longe do debate inglês referido neste artigo de Polly  Toynbee no Guardian https://www.theguardian.com/commentisfree/2017/jul/06/social-care-crisis-taxing-old-peoples-property?CMP=Share_iOSApp_Other.

1.7.17

A garantia de um rendimento para uma vida digna vinte anos depois do RMG

Há vinte anos, no dia de hoje, entrava em vigor em todo o território nacional, após um ano a funcionar em projectos-piloto de base municipal, um novo direito, o direito a um mínimo de rendimento para uma vida digna. 
O então designado rendimento mínimo garantido perdeu o nome, porque a ideia de garantia arranhava os ouvidos da direita e por mais que uma vez foi vítima de tentativas de asfixia burocrática, bem como de reduções de valor, a que, contudo sobreviveu.
A medida, que é um rendimento mínimo de participação e não um rendimento básico incondicional, foi criada com a intenção de assentar em dois pilares: o da prestação monetária e o do programa de inserção. Contudo, o Estado e a sociedade civil nunca chegaram a conseguir tornar o segundo pilar tão efectivo quanto necessário. Mas para o desenvolver criaram-se comissões locais participadas que foram embriões de uma territorializacao da política social que frutificou também em outras medidas.
Olhando para trás percebe-se que a enorme politicização inicial, com o PS a torná-la num símbolo da sua sensibilidade social e a direita a usá-la para estigmatizar os pobres, fez mal ao seu desenvolvimento equilibrado. Nessa politicização até o austero Tribunal de Contas se prestou ao episódio lamentável de uma das tecnicamente mais mal feitas e politicamente enviesadas auditorias da sua história, demonstradora, aliás, das suas limitações na compreensão das políticas sociais.
No calvário da vida política da prestação, até a crise financeira internacional serviu para um dia PEC misturar a já então discreta política pelos pobres com as reformas necessárias para combater o mítico estado social gordo.
Mas, finalmente, o rendimento social de inserção, como a direita o rebaptizou, é uma prestação com a qual os governos e a sociedade estão em paz. Saiu da boca de cena dos discursos políticos.Já não se fala dos "ciganos do rendimento mínimo" nem dos depósitos bancários dos milionários que requerem a prestação. Isso é bom. Contudo, esse silêncio pode estar também a permitir-nos esquecer quantas vidas a medida mudou, quantas novas oportunidades se criaram, quantos destinos se alteraram.
E, o que mais me preocupa não é a prestação, é que o problema que ela visa ajudar a resolver, o da pobreza extrema das pessoas de todas as idades, está aí, arriscando-se também a voltar a ser invisível.
Portugal precisa de um novo fôlego na política contra a pobreza e de um novo investimento, nomeadamente no apoio às famílias jovens, que seja muito mais abrangente que o que o RSI pode dar, tal como existe hoje.
Era essa atenção renovada ao combate à pobreza que, vinte anos depois, poderia continuar a dar sentido às preocupações sociais de que o RSI nasceu, não a glorificação de uma medida que entrou, felizmente, no nosso edifício das políticas sociais de cidadania.
É apelando a que se debata as formas de combater a pobreza e, em especial, aquela a que o Estado dá hoje menos atenção, como a das famílias jovens, marcadas pelo desemprego e a precariedade, a dos pais das crianças e jovens pobres que nos aparecem nas estatísticas, que acho que se pode honrar hoje, vinte anos depois, o espírito que um dia conduziu a esta medida.
Portugal continua muito desigual,  a ter muita pobreza e uma política social tímida na hora de a combater. Que a luta contra a pobreza volte à boca de cena e poderemos todos festejar o RSI, deixando-o em paz, no papel que já assumiu, até circunscrevendo-o, na interacção com as medidas que faltam. Quais? Para começar, apoios decisivos à redução da pobreza das famílias com filhos em idade escolar.