As notícias sobre Cabo Delgado como esta do Público dão conta de como há um padrão na formação de guerrilhas em contextos em que há simultaneamente recursos naturais valiosos, apropriados por minorias, oligarquias e elites, extrema desigualdade e pobreza, que aumenta para uns de modo concomitante com a riqueza de outros.
A partir dos anos sessenta do século passado muitas destas guerrilhas nasceram e cresceram em diversas partes do mundo, alimentando sucessivas vagas de movimentos que, começaram alimentados pela justa aspiração à auto-determinação contra a apropriação de recursos por potências coloniais e ocupantes, tiveram uma segunda fase em que predominaram insurgencias revolucionárias de princípios e/ou retórica marxista e guevarista e, nas últimas duas décadas têm sido cada vez mais pasto para a propagação dos fundamentalismos islâmicos ou outros de base religiosa.
Há nestas vagas algum paralelismo com o banditismo social que ainda assolava a Europa no século XIX, criando temor nas populações civis, alimentando-se da corrupção e da ineficácia do Estado e usando o mito de Robin dos Bosques para grangear adesão, enquanto se desenvolve uma intricada - e muitas vezes escondida - relação entre espalhar o terror, raptar, roubar e “proteger”, apelando a uma visão de redenção futura.
Em cada uma dessas vagas usou-se o quadro de análise da repressão da criminalidade até que este falhou, em alguns casos, estrondosamente. Alguns desses bandidos ganharam foro de cidadania, houve casos de sucesso de integração na vida social, como houve terríveis derrotas.
O que se passa no Norte de Moçambique não é novo no mundo, embora possa parecer-nos agora mais próximo porque é num país com que temos relações de proximidade. E costuma acabar bastante mal. Cabo Delgado tem todos os ingredientes para que o problema cresça: presença frágil do Estado, corrupção, riquezas em cuja apropriação a população autóctone não participa, atividades ilegais lucrativas que exigem capacidade armada e, cada vez mais, a utilização pelo Estado de repressão tida como ilegítima, neste caso não com paramilitares, mas com exércitos privados de mercenários contratados a empresas estrangeiras para conseguir o que as forças domésticas regulares são incapazes de fazer.
Para que haja uma solução estritamente militar e de segurança de curto prazo para este problema terá que haver uma política moçambicana que seja vista como responsabilizável pelas populações locais, uma distribuição mais justa de recursos e uma atenção à melhoria das condições de vida da população que quase sempre faltam nas abordagens repressivas precoces.
Se assim não for - e assim não está a ser - a maldição dos recursos apropriados por poucos alimentará os recursos dos insurgentes: a insegurança das populações, a oferta de uma narrativa de redenção futura e a gestão em tensão entre a sedução, a extorsão e o medo que a farão crescer até ao dia em que o caos estará instalado. E pode ficar por anos ou décadas. Cabo Delgado reúne todas as condições para se vir juntar a tragédias em curso em países vizinhos, em várias zonas de África e em outras geografias que nem imaginamos, num drama que vai da Nigéria ao Myanmar, muito para além dos casos que estão no topo da cobertura dos media mundiais.
https://www.publico.pt/1913097
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